Arte

Monday, 23 November 2015 11:19

CASTORINA | D. FELISMINA (MÃE DE “CHICO SACRISTÃO”)

Avalie este item
(1 Votar)
Castorina Pinto e trecho da rua Cel. Alexanzito- Rua Grande. Aracati-CE. Castorina Pinto e trecho da rua Cel. Alexanzito- Rua Grande. Aracati-CE.

Em 1945, o Centro Aracatiense publicava "Aracati e seus tipos populares" obra de Josias Correia Barbosa. O relato antropológico da cidade de Aracati se faz presente na descrição minuciosa de personagens anônimos- reminiscências da infância do escritor- imortalizados em sua crônica. 

Alta magra, esguia e branca. Rosto oval e lívido. Traje característico das viúvas de Aracati: saia preta comprida, arrastando pelo chão; casaco de chita escura com campos claros, dessa que se usa para aliviar o luto; ao pescoço, onde o casaco abotoava como túnica de soldado, trazia sempre enrolada, com folga, uma mantilha preta, rendada. Nos pés, que se podiam ver em lances raros e rápidos, sapatos pretos salto baixo, em forma de canoa, calçados sobre meias pretas e grossas de algodão, cheias de asperezas dos fios mal tecidos, assim como se fossem a casca de uma graviola. No cocuruto da cabeça um pequeno cocó bem enroscado, preso por um grande pente de chifre. 

 
A traços rápidos e largos, eis ai o perfil de D. Felismina, respeitável matrona de Aracati. Desenhando o perfil, vejamos a função única e privilegiada que desempenhava na sociedade aracatiense. 

 
Tinha a função única e especializada de preparar os agonizantes para a viagem do além: ajudava a morrer. 

 
É preciso recuar três décadas de anos e mergulhar os olhos no cenário interessantíssimo das tradições de Aracati, as quais fluíram de um passado remoto, quando à Princesa Jaguaribana afluía gente de outras terras, que ai se estabelecia trazendo o seu contingente de costumes e tradições, que modelariam a vida e o espírito da cidade; é preciso- repetimos- recuar no tempo e caminhar no espaço para descobrir o retrato da época, bem dentro da cidade, e compreender o exato significado da inocente expressão: “ajudar a morrer”. 

 
Não é ajudar a morrer como fazem os médicos; é preparar a alma ensinando-lhe a melhor maneira de, apagadas as luzes da vida, encontrar na escuridão da morte o caminho do céu. 

 
Essa, a verdadeira profissão de D. Felismina. E como a desempenhava, que o digam as centenas de almas que ela, convicta de sua função social e religiosa, empurrou quase à força deste para o outro mundo! 

 
Quando D. Felismina passava em largos passos de ganso pelas ruas da cidade, o seu povo simples, que ainda não conhecia a vida pecaminosa da civilização, indagava mais ou menos inquieto: quem está para morrer? 

 
E D. Felismina, que não temia competência, por isso mesmo era única no ofício, fazia questão que lhe perguntassem para onde ia só pelo prazer de transmitir em primeira mão, à curiosidade alheia, o nome da vítima. Tanto lhe fosse perguntado, a resposta vinha rápida e triunfante: vou ajudar fulano a morrer. 

Felismina entregava-se de corpo e alma ao seu ofício. Fazia dele não apenas o seu meio de vida, mas a sua própria razão de ser. E da mesma forma que a indústria de um produto se aperfeiçoa, se modifica e se desenvolve, D. Felismina esmerou-se no seu ofício, aprimorou-se na sua profissão e ampliou a sua forma de trabalho, conseguindo mais tarde o monopólio de outros misteres acessórios, tais como o de carpideira e o de alfaiate de defunto. 

 
Assim, preparava o vivo para a morte e depois preparava o morto para sua viagem à última morada, não sem antes chorá-lo. 

 
Eu vou relatar um dos fatos que mais me impressionaram na infância, imprimindo à minha retina imagens inapagáveis e, a fazê-lo, dar-vos-ei uma descrição tão perfeita quanto as minhas faculdades visuais e auditivas ainda o conservam de como D. Felismina fazia o seu eficiente trabalho. 

 
Tive de passar certa vez, nos recuados tempos de minha meninice, pela frente de uma casinha situada à entrada da rua do Comércio, nas proximidades da residência do saudoso Leandro Osório. Uma casinha de duas janelas e uma porta no centro, isolada das outras, defronte da antiga residência de Monsenhor Bruno Figueiredo, uma relíquia de nossa terra, que, por sua vez, ficava pegada aos armazéns da outrora opulenta firma J. Klein e Figueiredo. 

 
Eram 19 horas aproximadamente. Ouvindo exclamações e lamentos parei e, levado pela minha curiosidade de garoto, olhei para dentro através das tabuletas do postigo. No quarto, cuja porta abria para a sala, havia um enfermo; uma luz mortiça de candeia se consumia tristemente; algumas pessoas silenciosas em torno, fisionomias cansadas, faziam o “quarto”. Dominando a cena, D. Felismina estava sentada aos pés do doente, voltada para ele; segurando com as mãos brancas de cera as descarnadas mãos do doente, obrigava-as a permanecerem em postura de oração. 

 
Com a voz de falsete, um tanto estridente, cheia de tremuras e seráficas modulações, D. Felismina exclamava: “Jesus, Jesus seja contigo! Jesus, Jesus seja contigo”! 

 
Era a primeira vez que eu via uma cena como essa, embora ela fosse comum naqueles velhos tempos. A minha imaginação de criança influenciada pelo medo e pela curiosidade viu, sem dúvida, as coisas de uma forma exagerada, pois não tenho certeza de que as atitudes de D. Felismina exprimiam realmente os sentimentos dos quais, segundo fiquei acreditando, estava ela inteiramente possuída. 

 
O fato certo e indiscutível, entretanto, é que ela ajudava um cristão renitente a morrer. Digo renitente porque, a julgar pela atitude do enfermo, e pelos modos de D. Felismina (segundo o meu ponto de vista, decorrente – é claro - da impressão que o quadro me causava) aquele se esforçava para ficar grudado a terra, enquanto esta se esbofava por enviá-lo ao céu! 

 
Com efeito, D. Felismina estava contrafeita; os cabelos desgrenhados; o suor escorria-lhe pela testa vasta; as faces lívidas, enceradas, transpareciam cansaço, impaciência e desânimo; arregalava os olhos, curvava-se sobre o padecente e recuava alternadamente, falando sempre, repetindo ininterruptamente “Jesus seja contigo”, lembrando as lamentações de um maometano prostrado diante de Alá! 

 
O moribundo, todavia, amava a vida e temia a morte; abraçava-se àquela e fugia desta, e o fato é que não morria! 

Felismina então se desdobrava; segurava sempre as mãos do insubmisso à morte, agitando-se em movimentos convulsivos; encarnava o seu papel; tinha o seu público e não podia fracassar. 

 
Há muitas horas que lutava e o cristão não morria. Mas tinha de morrer. Ela é que não ficaria desmoralizada. Voltava à carga como mais energia. Mudava de tom. A voz então ficava mais cavernosa e mais lúgubre e o quadro se carregava de nuances terríficas, dignas de serem descritas pelo gênio de Poe. A encenação de um ambiente tumular podia muito bem dar melhor resultado. Era preciso criar um clima propício à morte para que ela se resolvesse a vir ajudar a D. Felismina... Todos os modos, todas as formas, foram então estudadas e usadas no sentido de convencer o mortal teimoso de que ele devia morrer; e não era só isso: devia morrer logo, porque assim a vitória de D. Felismina seria mais completa e a auréola de prestígio envolveria, protetora, a sua função, o seu ofício, que além do mais, era monopólio exclusivo seu. 

 
Horrorizado, não assisti ao fim da cena, porque o paciente se recusava a aceitar a derrota. Não tive, assim, oportunidade de ver e ouvir os atos que se seguiram à morte do “ajudado”. 

 
Pessoas assistiam a tais cenas me contaram que, vencido o cristão, D. Felismina descansava um bocadinho, com os olhos semicerrados, gozando os efeitos de seu triunfo... Depois começava a carpir. Chorava em voz alta o defunto, lia orações, rezava terços e pedia ao Onipotente que acolhesse no seu reino aquele pecador. 

 
A seguir vinha o último ato: preparava D. Felismina a mortalha. Ia às lojas, comprava o necessário e voltava à casa do defunto para fazer-lhe aí a última indumentária. 

 
A propósito, certa vez D. Felismina se encontrava na loja do Cel. Alfredo Goiana comprando material necessário à confecção de uma mortalha, quando notou, bastante desapontada, que se esquecera da medida do defundo. 

 
Entra na ocasião a Castorina, a sempre prestimosa Castorina, que muito conhecemos e estimamos. D. Felismina olhou para recém-chegada, tirou uma mira, pediu licença e começou a tirar medidas pelo corpo da Castorina. Esta tendo pedido algo para ver, discutia mais ou menos distraída com o caixeiro, quando reparou que D. Felismina lhe passara pela cintura um pedaço de galão dourado, desse com que se enfeitam mortalhas... Castorina, indignada, esquivou-se com rapidez, fitou duramente D. Felismina e gritou: “Sinha vaca” você pensa que eu sou manequim de defunto?... 


 
Fonte: BARBOSA, Josias Correia. D. Felismina: Mãe de Chico Sacristão. In: BARBOSA, Josias Correia. Aracati e seus tipos populares. Fortaleza: Ramos & Pouchain, 1945. p. 6-11. (Homens, Fatos e Cousas de Aracati). 

 

Lido 609 vezes Última modificação em Wednesday, 09 November 2022 17:18
Faça login para postar comentários

Sobre nós

O Grupo Lua Cheia, com sede na cidade de Aracati-CE, é um coletivo de artistas formado em 1990 com o objetivo de fomentar, divulgar e pesquisar a arte e a cultura.