Arte

Thursday, 11 January 2024 16:32

“EU ME CONSIDERO UM FRUTO DE TUDO ISSO”: JEFFERSON NOGUEIRA CONTA COMO ARACATI INFLUENCIOU SUA TRAJETÓRIA ARTÍSTICA

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Diversos registros da vida cultural de Jefferson Nogueira Diversos registros da vida cultural de Jefferson Nogueira Acervo do artista.

Jefferson Nogueira é um artista multifacetado! Em Aracati-CE, sua terra natal, ele se envolveu desde a adolescência com diversas expressões artísticas, como teatro, poesia, pintura e dança. Contudo foi o canto lírico que o cativou e o levou a seguir uma longa e dedicada jornada de estudos e aperfeiçoamento artístico. Hoje, ele integra o Coral do Amazonas, um dos principais grupos de canto do país, e participa de eventos e festivais de ópera. Nesta entrevista, conduzida por Marciano Ponciano, ele conta um pouco de sua trajetória, suas influências e seus sonhos na arte de cantar.

Marciano-Você é natural de Aracati, cidade histórica situada no Litoral Leste do estado do Ceará. É sensato afirmar que as primeiras expressões na arte tiveram seu nascedouro sua cidade natal?

Jefferson- Com certeza! Aracati tem uma história linda e a arte sempre permeou sua construção social; seja na sua arquitetura, na música, pintura, artesanato. Os grupos locais promovem uma resistência artística e memorial dessa cultura que até parece ter ficado lá no passado, mas que está no cerne da cidade. Eu me considero um fruto de tudo isso, do envolvimento com esses grupos que faziam cultura nas ruas e escolas de Aracati e que me aproximaram da arte em suas diversas expressões. Com 14 anos estudei teatro no Grupo Lua Cheia, escrevi meus primeiros poemas, participei de recitais e peças teatrais; com 16 já estava adentrando as artes plásticas, pintando quadros enormes em concursos mariais; com 17, participava de danças e compunha para competições locais. Tudo começou em Aracati.

Marciano- Até o exercício da profissão como cantor lírico, uma longa trajetória se fez. Como foi construído esse caminho?

Jefferson- Eu sempre gostei de cantar, mas tinha muita vergonha da minha voz- sabe aquele sentimento de ouvir sua própria voz gravada e odiar? (Risos) Eu não era diferente. A primeira vez que pensei em canto lírico foi quando ouvi Carmina Burana, do compositor Carl Off. Meu irmão tinha acabado de comprar um aparelho que tocava CD, lembro-me que eu ouvia incansavelmente esse álbum e compartilhava com vários amigos artistas. Dois anos depois, soube que o Colégio Marista estaria formando um coral de alunos, sob a direção da Maestrina Rosângela Ponciano. Eu fiquei tão feliz! Lembro que cheguei cedo para as audições e fui aprovado. Ali, foi a primeira vez que ouvi minha voz ressoando com outras vozes. Foi uma catarse e dali em diante eu já pensava em cantar. Na cidade, ainda me envolvi com alguns corais ligados a igrejas; depois me mudei para Fortaleza para estudar na UECE, participei de corais maiores – um deles tinha 200 cantores, mas todos de forma amadora, só por hobby mesmo.

Depois, os caminhos profissionais não associados à música me levaram para a Região Norte. Morei em Porto Velho e depois em Manaus. Em ambas as cidades, sempre estive participando de movimentos corais e fazendo alguns solos.

Em 2011, já morando em Manaus, novamente meu irmão comprou ingressos para assistir ao Festival de Ópera do Amazonas. Seria a primeira ópera que eu veria ao vivo! Foi a segunda catarse musical na minha vida! Depois de quase 4 horas de apresentação e muitas lágrimas derramadas, minha esposa olhou para mim e perguntou o que tinha achado da ópera, eu lembro que só consegui responder: “É isso o que eu quero fazer da vida... Cantar e atuar. Eu quero estar ali.”
Tendo a meta, procurei os grupos locais ligados ao teatro e ingressei no Grupo Vocal dos Corpos Artísticos, que é uma espécie de coral experimental ligado à secretaria de cultura para a formação de cantores. Já nesse grupo, as oportunidades foram surgindo e tratava de aproveitar todas. Era uma sede de aprender que nem eu reconhecia. Em 2018, fiz o vestibular para a Universidade Estadual do Amazonas, no curso de Bacharel em Música com especialização em canto -até hoje eu não consigo entender por que não fiz esse curso na UECE no primeiro vestibular. Na faculdade, também fui aproveitando todas as oportunidades. Cantei no coral da universidade, entrei em projetos de ópera, festivais e essa “brincadeira” foi aumentando e os resultados também.

Por último, em 2021, prestei o concurso para o Coral do Amazonas, um dos corpos permanentes ligados à Secretaria de Cultura do Estado, formado por 65 cantores líricos que participam dos principais eventos líricos locais e é uma das referências de canto no Brasil.

Uma história longa, construída à base de muito estudo. Como diz um pensador que admiro: “O estudo é a chave da oportunidade.”

Marciano- Quais são suas principais influências musicais?

Jefferson- No início, minhas principais influências eram as dos principais cantores europeus, entre eles os principais tenores: Luciano Pavarotti, José Carreras, Plácido Domingo, não tem como não ter essas figuras como influências. Todavia, ao longo do estudo na universidade e o próprio trabalho no coral, entrando em contato com uma variedade bem maior de cantores e músicas, fui desenvolvendo um carinho especial por alguns tenores latinos e brasileiros que fazem muito sucesso aqui e no exterior. Isso mesmo! O Brasil continua exportando cantores de grande qualidade para outros países. Gosto muito de Juan Diego Flórez,  tenor peruano de voz muito leve e potente; Rolando Villazón,  tenor mexicano com voz muito expressiva e que atua muito bem nos palcos; o brasileiro Fernando Portari, com quem tive a chance de trabalhar duas vezes e que, além de uma voz linda, possui um carisma invejável. E só nomeei os tenores! Se enveredarmos pelos outros timbres, conseguiria apontar muitos outros.

Na música, tenho uma tendência pelas composições brasileiras eruditas. É muito comum acharmos que só existiu música erudita na Itália e outros países europeus e isso não é verdade. Tivemos e temos excelentes compositores que produziram pérolas, entre eles Carlos Gomes, Claudio Santoro, Villa-Lobos, o cearense Alberto Nepomuceno e muitos outros. Sempre dou um jeitinho de incluir música brasileira nos meus repertórios de recitais.

Marciano- Quais foram os trabalhos mais significativos que você realizou até agora?

Jefferson- Gosto muito dos trabalhos voltados para o canto coral. Nessa área foram muitos trabalhos lindos que pude realizar, mas destaco o Réquiem de Verdi regido pelo Maestro Marcelo de Jesus; a própria composição Carmina Burana de Carl Orff, que foi a primeira obra erudita que ouvi na vida e tive a oportunidade de cantar duas vezes. Curiosamente, em uma das vezes, estava ao lado de minha filha mais velha que estuda canto e piano no LICEU de Artes e Ofícios Claudio Santoro, em Manaus.

Como solista, amei estar no elenco da ópera “O Menino Maluquinho”, de Ernani Aguiar; ali, tive que mostrar tudo o que aprendi não apenas no canto, mas em atuação e ainda tinha que interagir no palco com quase 40 crianças que também atuavam e cantavam. A ópera contava com cenários móveis de modo que eu tive que cantar andando de patinete numa das cenas. Foi a lembrança mais louca e mais legal dos trabalhos que já fiz! Até hoje, quando esbarro com alguns dos cantores do coral infantil, eles me chamam de Porteiro numa referência ao personagem que interpretei.

Marciano- Como você se prepara para uma apresentação?

Jefferson- A preparação não é muito diferente de uma apresentação de teatro ou de um cantor de música popular. Eu destacaria como diferença o fato de que no canto erudito ou lírico, os cantores cantam muito em outros idiomas, muitos dos quais a gente nem fala. Para essa parte, exige-se uma preparação fonética muito grande, pois a audiência precisa sentir o canto como se aquela fosse sua língua nativa.

Geralmente, quando recebo ou escolho um repertório, vou estudar a época em que a música foi escrita. Procuro me inteirar sobre as características da escola em que a obra se encaixa – cada período da música traz nuances para as composições de uma determinada época, assim como as escolas de pintura, escultura etc. Depois, vou transcrever a fonética de cada palavra e aprender a pronunciar. Traduzo o texto original para o português a fim de saber a poesia que está sendo cantada. Essa é a primeira parte.

Depois, vem a parte da impressão do cantor sobre o que está sendo cantado. Assisto vários vídeos, quando disponíveis, para ver o que outros cantores mais experientes fizeram e monto a minha linha do que fazer. Esse processo é repetido incontáveis vezes até tornar-se parte de mim e é isso o que vai para o palco.

A apresentação em si exige uma preparação prévia. Portanto, me alimento bem, durmo bem e procuro relaxar ao máximo. Quando chego no teatro – e sempre chego muito cedo – aqueço a voz, o corpo também, repasso algumas marcações enquanto as cortinas estão fechadas e entro num estado de muita concentração. Evito ficar falando, pois, a gente perde a noção de volume quando há duzentas pessoas preparando as muitas facetas do espetáculo – são camareiras falando, maquiadores falando, músicos da orquestra repassando partes, pessoal da técnica subindo e descendo cenário e testando tudo. Numa ópera como o Menino Maluquinho, para exemplificar a quantidade de pessoas envolvidas, ainda havia 40 crianças e cuidadores responsáveis transitando com elas.

Marciano- Quais são seus planos para o campo profissional?

Jefferson- Por incrível que pareça, ainda não defini muita coisa. Estou na fase de lua-de-mel, apreciando cada oportunidade que aparece; mas penso em fazer um concurso para dar aulas na universidade – esse meu lado de professor sempre foi algo forte também. Penso em me especializar na corrente das músicas eruditas brasileiras. Tenho enveredado também pelo campo da composição, até porque a gente envelhece e a voz não é substituível, envelhece com a gente. Já tive duas composições de minha autoria executadas pela Orquestra de Câmara do Amazonas e alguns arranjos para coral cantados pelo coral da universidade. Imagino que esse será o caminho e estou estudando para isso. Meu sonho será realizar algo em minha própria cidade, trazer talvez um pequeno grupo de cantores eruditos para divulgar isso em Aracati, não a título de promoção pessoal, mas para fomentar essa área na comunidade local...

Marciano- Como você lida com o estresse e a pressão de se apresentar em público?

Jefferson- Dizer que não fico nervoso seria uma grande mentira. Sempre bate aquele frio na barriga, mas a experiência que tive no teatro durante a adolescência me ajuda muito. Durante esse convívio de anos me apresentando em teatros e grupos de rua, desenvolvi uma capacidade de abstrair o público e concentrar-me no que estou fazendo. Muitas vezes, esqueço que tem pessoas ali me assistindo e isso me permite vivenciar profundamente as personagens, o cenário, as montagens como se tudo aquilo fosse real por alguns minutos.

Marciano- Quais são as principais diferenças entre cantar em um coral e cantar solo?

Jefferson- Em termos de técnicas não muda nada, ambos os tipos de canto exigem preparo físico adequado, pois não se canta com o “gogó” apenas, mas utilizando todo o aparato respiratório e até mesmo os músculos pélvicos. As diferenças residem nas adaptações que precisam ser feitas.

O canto coral exige uma timbragem vocal, isto é, todos precisam nivelar o volume e a sonoridade até formar uma única massa sonora. Quando ouvimos um coro, parece que ouvimos uma única massa sonora. Isso vai exigir que todos respirem ao mesmo tempo, pronunciem cada consoante e vogal com muita precisão. Para que esse processo ocorra, os maestros e preparadores vocais ensinam até onde falar os “s” no final de cada palavra e o tamanho dessa consoante.

No canto solo, essa timbragem some um pouco. O cantor sente-se à vontade para soltar o volume até onde o maestro achar necessário. Com a orientação, o cantor solo vai moldando sua voz à quantidade de instrumentos e repertório executados para que ele seja um destaque e não parte da massa sonora total.

Geralmente, numa apresentação de coro, este fica atrás dos musicistas, exatamente para que a audiência ouça a massa total. Numa apresentação solo, este fica mais a frente para se destacar dos demais.

Marciano- Como é feita a escolha do repertório para as apresentações nas quais teve a oportunidade de participar?

Jefferson-De várias maneiras diferentes, depende muito de quem está dirigindo o espetáculo. Quando uma ópera é encenada, tudo fica mais amarrado, pois um compositor já colocou tudo do jeito que ele quer. Assim, não há muita liberdade de escolha.

Quando se trata de um recital, onde vários compositores são selecionados ou várias músicas de um mesmo compositor, é feita uma triagem para cada voz. Eu canto como segundo tenor, então algumas músicas são para minha tonalidade vocal, outras não. Tudo isso é levado em conta na hora da escolha, mas geralmente os maestros fazem essa triagem perfilando o aquilo que eles desejam. Já participei também de recitais onde o maestro escolheu os timbres que ele queria e nos deixou livres para escolhermos as canções com as quais nos sentíssemos mais à vontade. Depois, com as seleções em mãos, eles fazem a organização por compositor, época, estilos etc.

Marciano- Como você equilibra sua vida pessoal e profissional?

Jefferson- Sinceramente, esta é uma pergunta que seria mais bem respondida pela minha esposa, que é alguém que vê tudo de fora desse “tsunami”! Trabalho com música no Teatro Amazonas, mas ao mesmo tempo ainda trabalho como professor e sou aluno universitário. Com tanta coisa, preciso sempre ter cada passo meu programadíssimo!

Ensaio de segunda a sexta das 8h:30 às 11h30; saio do teatro e corro para a faculdade e estudo até umas 14h; depois sigo para meu trabalho como professor que é outra paixão da minha vida. Na semana, chego em casa por volta das 22h, quando assumo minha responsabilidade de pai e marido. Antes de dormir, reservo um tempinho para estudar as coisas do dia seguinte.

Mas asseguro que tudo isso é possível com o planejamento adequado. Aproveito cada oportunidade livre para cuidar de minha vida pessoal e ter um pouco de lazer. Durante o período de férias e feriados eu, real e literalmente, descanso.

 

Para ouvir o tenor aracatiense Jefferson Nogueira separamos um registro audiovisual feito por ocasião do 23º Festival Amazonas de Ópera. Ouça, portanto “A fiandeira”, música de Chiquinha Gonzaga e letra de Maria da Cunha, interpretada pelo tenor Jefferson Nogueira acompanhado pelo pianista Marcelo de Jesus.

 

 


Entrevista cedida por Jefferson Nogueira a Marciano Ponciano em 11 de janeiro de 2024.

Lido 734 vezes Última modificação em Thursday, 11 January 2024 16:45
Marciano Ponciano

MARCIANO PONCIANO- Sou natural de Aracati-Ce, terra onde os bons ventos sopram. Na academia da vida constitui-me poeta, realizador de sonhos, encenador de máscaras. Na academia dos saberes acumulados titulei-me professor de Língua Portuguesa e especializei-me em Arte-Educação. O projeto de vida é semear a arte por onde passe: teatro, poesia, artes plásticas- frutos da experiência acumulada em anos dedicados a ser feliz. Quando me perguntam quem sou - ator, poeta, encenador, artista plástico, educador? Afirmo: - Sou poeta!

Publicou:

Poetossíntese. Coletânea de poemas. Ed. própria. Aracati-CE. 1996.

Caderno de Literatura Poetossíntese. Coletânea de poemas. Ed. Terra Aracatiense. Aracati-CE. 2006.

aracaty. Caderno de Literatura Poetossíntese. Ed. Terra Aracatiense. Aracati-CE. 2010.

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Sobre nós

O Grupo Lua Cheia, com sede na cidade de Aracati-CE, é um coletivo de artistas formado em 1990 com o objetivo de fomentar, divulgar e pesquisar a arte e a cultura.