Aracati

Sunday, 09 March 2014 17:07

JACQUES KLEIN

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Detalhe- Jacques Klein, foto presente no programa de recitais da Semana Jacques Klein na Escola de Música da UFRJ, entre 10 e 13 de julho de 1990. Data da foto desconhecida. Detalhe- Jacques Klein, foto presente no programa de recitais da Semana Jacques Klein na Escola de Música da UFRJ, entre 10 e 13 de julho de 1990. Data da foto desconhecida.

Morto precocemente em 1982 e pouco conhecido pela nova geração, o pianista cearense que tocava com as maiores orquestras do mundo e dava autógrafo na rua é lembrado em concurso internacional de talentos 

  

Imagine um excelente pianista, do tipo que é referência mundial, tocando com as maiores orquestras do planeta. Dê a ele bom humor, gênio impulsivo e, de quebra, um talento especial para se comunicar com plateias das mais esnobes às mais simplórias. Hoje pode ser difícil imaginar, mas o produto dessa mistura existiu, sim, veio de Aracati, no Ceará, e se chamava Jacques Klein. Consumido por um câncer quando ainda estava no auge da carreira, aos 52 anos, Klein era um tipo raro de músico clássico. Era popular. Amava interpretar Beethoven, Mozart e Chopin. Mas também compôs com Dorival Caymmi, teve um grupo de jazz e aparecia com tanta naturalidade na TV que chegava a dar autógrafo na rua. Morreu em 1982, mas parece que foi há séculos. Deixou quase nada gravado, e, saindo do circuito da música clássica, seu nome é pouco conhecido entre os mais jovens. Daí que ele foi escolhido para ser o homenageado do primeiro Concurso Internacional BNDES de Piano, que acontece esta semana [outubro/2009], na Sala Cecília Meireles, reunindo 20 jovens pianistas brasileiros e estrangeiros, pré-selecionados entre 34 inscritos. Há mais de 50 anos não havia concurso dessas proporções por aqui. 

  

A iniciativa (e a coordenação) é de dois ex-alunos de Jacques: os pianistas Lilian Barretto e Luiz Fernando Benedini, com o apoio de Arnaldo Cohen, outro ex-aluno. Reza a lenda que ele nem cobrava. 

  

- O Jacques nunca aceitou receber um tostão. Não sei se era assim com todo mundo, mas foi comigo, o Benedini e o Arnaldo - lembra Lilian, que o viu tocando pela primeira vez quando tinha 10 anos. 

  

Lilian vivia em Ribeirão Preto, Jacques no Rio. Ela soube que ele faria um recital por lá e cismou com a ideia de não só vê-lo, mas também tocar para ele. E tocou. A Balada Nº 1 de Chopin. Jacques ficou impressionado, mas, sem meias palavras, cortou logo: - Não dou aula para criança. 

  

Lilian acabou indo para São Paulo, ganhou um prêmio para estudar em Varsóvia e, aos 24 anos, procurou Jacques, anunciando: - Agora não sou mais criança. 

 
Jacques aprendeu piano cedo, por causa do pai, fundador do Conservatório Alberto Nepomuceno, em Fortaleza. Ele estudou lá, mas pouco depois, já vivendo no Rio, foi para o Conservatório Brasileiro de Música. Até que cansou. Ou melhor, se apaixonou pelo jazz e tratou de formar um trio. 

 
- Passei cinco anos e meio sem frequentar um concerto, sem ouvir música clássica - ele disse, certa vez, numa entrevista para Clarice Lispector. - Esse foi o tempo das grandes junn sessions que Carlinhos e Jorge Guinle organizavam, reunindo todos os amantes do jazz. Ao lado disso tudo, eu continuava a estudar no Santo Inácio e a me preparar para a carreira diplomática. 

 
Um dia, na trilha sonora de um filme, Jacques ouviu o Concerto N° 2 de Rachmaninoff. E o efeito foi arrebatador. Retomou os estudos de música clássica e seguiu para os Estados Unidos. Em 1953, aos 23 anos, faturou por unanimidade o primeiro lugar no Concurso Internacional de Genebra, que não premiava ninguém havia cinco anos por falta de candidatos à altura. E dois anos depois, em Londres, ganhou a Medalha Harriet Cohen de melhor pianista do ano. 

 
- Ele reunia no seu toque mágico tudo o que um grande pianista pode almejar - diz o maestro Isaac Karabtchevsky, um parceiro frequente. - Tinha a exata compreensão do significado maior da frase, que molda a estrutura e aprimora a sensibilidade. Não adianta técnica sem a consciência da pronúncia. Seria como ler uma poesia sem acentos e inflexões, declamar sem alma. 

 
Entre as mais fortes lembranças dessa "alma", o maestro cita o lendário show de 1971, no Canecão, que uniu clássico e popular, tendo no palco os dois, mais a OSB, Chico Buarque, o MPB 4 e a bateria da Mocidade, sob a direção de Manoel Carlos. 

 
- Ele era exigente, mas sabia ouvir. No show comportou-se como um artista popular, entre os outros que lá estavam. Gostava do contato com plateias diferentes. Foi inesquecível — diz o novelista. 

  

Jacques Klein era mesmo cheio de surpresas. Foi solista das filarmônicas de Londres e Nova York, da Orquestra Nacional de Paris e da Sinfônica de Viena. Fez concertos memoráveis sob a regência de Kurt Masur e Zubin Mehta. Também tocou com músicos estrelados, como o austríaco Friedrich Gulda. Ao mesmo tempo, gravou ao piano, entre outras, o samba "Dora", de Dorival Caymmi, e o samba-canção "Nesta rua tão deserta", dele com Caymmi, Carlos Guinle e Hugo Lima. E tocou na novela "Sétimo sentido". 

  

Dono de uma personalidade forte, quando não queria fazer uma coisa não fazia. E ligava para os amigos a qualquer hora só pra retomar uma história ou fazer brincadeiras. Adorava comida, bons hotéis e computava, em média, 45 recitais por ano fora do Brasil. Mas dizia se emocionar tanto no Scala de Milão quanto numa igreja de Madureira. 

  

Quando descobriu que tinha câncer, Jacques perdeu 20 quilos, mas seguiu trabalhando. No dia 27 de setembro de 1982, tocou pela última vez no Teatro Municipal, com a Orquestra de Câmara de Moscou. Em 23 de outubro, ele morreu, deixando uma filha, Daniela, e poucas gravações de suas performances. Na época, dirigia pela segunda vez a Sala Cecília Meireles, onde vai ser lembrado intensamente esta semana. O resultado do concurso sai no sábado. 


Fonte: SÁ, Fátima. Jacques Klein. O Globo, Rio de Janeiro, 11 out. 2009. 

 

Lido 315 vezes Última modificação em Friday, 04 November 2022 09:10
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