Aracati

Saturday, 07 November 2015 21:41

IMPRENSA DE ARACATI | O EMPASTELAMENTO DO JORNAL A REGIÃO

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A história do empastelamento do jornal “A Região” é um indício da intolerância política à liberdade de expressão no início do Século XX, em Aracati-CE. 

 
Pessoas que vinham da missa da madrugada na Igreja do Rosário encontraram uma pequena banda de músicos regida pelo maestro João Gomes, executando festivos dobrados, acompanhados por um fogueteiro papocando foguetes, soltando girândolas que espocavam no ar, acordando a cidade que ainda adormecia. 

 
Acompanhados pelo olhar dos curiosos e a admiração dos transeuntes, a banda de músicos se dirigia garbosa à Rua do Comércio [1], nº 148, onde ficavam localizadas as oficinas do jornal “A Região [2]” vizinho à residência de seu proprietário e principal redator Ezequiel da Silva Menezes. 

 
Um grupo de amigos e admiradores resolveu, no dia do 4º aniversário do jornal A Região, 16 de março de 1928, sexta-feira, fazer uma homenagem ao hebdomadário e ao seu proprietário promovendo uma alvorada festiva. 

  

A NOTIFICAÇÃO 

 
Ainda desordenado pelo impacto da agradável surpresa patrocinada pelos amigos, Ezequiel Menezes, às 7 horas, abria as portas da sede do jornal, quando foi abordado por um fiscal da Prefeitura: 

 
- O Senhor está multado. 
- Eu?!... 
- Sim, o senhor mesmo! 
- E por quê? Diga-me, por favor! 
- Porque não pode perturbar o sossego público. O código de posturas, no artigo 72, proíbe o uso de bombas na cidade, “salvo em legítima defesa”. 
- Não sabia... E isto aqui é tão comum! 
- Não tem desculpa. Lei é lei. 
- Mas... Eu entrei nisto como Pilatos no Credo. Foram os amigos. 
- Diga isso ao Prefeito. 
- Não tem conversa. Pague! 
- Diga, quanto é a multa? 
- Quinze mil réis! 
- Só?! 
- Extraia o recibo, disse a vítima em tom alegre como se houvesse tirado de cima de si todo o peso do mundo. 

  

Ora! Numa cidade com 4.000 habitantes um assunto dessa natureza foi motivo para muitas discussões. Nesse mesmo dia, 16 de março de 1928, às dezenove horas e trinta minutos, foi realizada uma sessão extraordinária do Centro Cultural da Mocidade, em homenagem ao jornal A Região, que naquele tempo era o único jornal que existia em toda a região Jaguaribana. Estavam presentes nessa sessão as pessoas de maior grado da sociedade aracatiense. 

 
As expectativas pela edição do próximo número do jornal A Região eram preocupantes, pois a população de Aracati aguardava ansiosa a resposta que o jornal daria à arbitrariedade cometida contra seu diretor e a represália que viria, com certeza, caso o jornal fizesse críticas ao poder municipal a cuja frente se encontrava o Cel. Alexanzito Costa Lima. A depender da nota, a divergência poderia evoluir para uma polêmica de cunho político. A edição do jornal do dia 25 de março de 1928, domingo, começou a circular tradicionalmente muito cedo àquela manhã. 

  
O diálogo supracitado entre o fiscal da prefeitura e Ezequiel Menezes, foi reproduzido pelo jornal “A Região.” Nesse dia, foi publicada uma coluna com o título “Respingos” assinada por Villa Vargas, naturalmente um pseudônimo, pois a nota era carregada de sarcasmo e ironia. 

  

A NOTA PUBLICADA 

  

Na mesma edição o jornal publicou ainda uma nota na segunda página com o título “A Multa”, que declarava:

 
“Não é literatura. É verdade. A Região, no dia do seu quarto aniversário, logo pela manhã cedo, recebeu o primeiro prêmio de seu grande esforço. Os nossos amigos querendo demonstrar as suas simpatias levaram a efeito uma alvorada à porta de nossa redação. Uma charanga e o espocar de vinte e um tiros de bombas foi o anúncio estrepitoso que alertou a população naquele dia de glórias. Mal refeitos da surpresa ainda não completa a distribuição do jornal, foi-nos imposta a multa de quinze mil réis. Dizia-se que essa imposição provinha da infração de um código de posturas, aqui em vigor. Foi-nos muito agradável essa notícia, porque não sabíamos que aquele espécimen de lei colonial valia alguma coisa. E tanto estávamos convencidos de que o tal código não vigorava, que víamos as bombas e foguetões estrugirem por qualquer motivo ou sem ele. 

  

Aniversários de chefes políticos, prefeitos, delegados, subdelegados etc., etc. Vitórias eleitorais, visitas de clubes de futebol, piqueniques, farras, bumba-meu-boi, fandangos, “pastorinhas”, congos, e até sessões do cinema pertencente ao irmão do detentor do poder executivo local, - são sempre aqui anunciados e festejados por bombas e foguetões. Entretanto, ninguém fora até agora multado. Coube a nós esta honra e esta glória! 

 
Ademais, pagando a multa da infração cometida por nossos amigos, cumprimos um dever patriótico. A prefeitura está tão pobrezinha, apesar dos cento e dez contos de arrecadação no ano passado!” 

  

Além do mais, o Ezequiel Menezes ao receber das mãos do funcionário da prefeitura, Zé de Deus, o recibo da multa dos quinze mil réis comentou: “Paguei quinze mil réis e fiquei a pensar que em outubro do ano passado, o meu filho mais velho adoecera em consequência do susto que lhe causara o estampido de bombas e foguetões queimados por ocasião do natalício de um grande da terra. Entretanto ninguém foi multado”. 

  

O EMPASTELAMENTO 

 
Às três horas da tarde desse mesmo dia 25 de março, domingo, o silêncio da tarde dominava a cidade modorrenta, quando alguém bateu palmas à porta da residência [3] do Ezequiel Menezes, vizinha à tipografia que publicava A Região. Como fazia sempre aos domingos, Ezequiel reservava a tarde para descansar numa rede que mantinha sempre armada numa área ventilada ao fundo da casa. Estava dormindo o diretor do jornal quando sua mulher foi acordá-lo, pois havia um senhor que ela não reconheceu, querendo falar com ele. 

 
Depois de se compor Ezequiel foi até a porta atender quem o procurava, ao reconhecer Raimundo Maia [4], pessoa com quem mantinha certa relação, convidou-o para entrar, este recusou e disse que estava ali para adquirir um exemplar de A Região daquele dia. 

 
Ezequiel voltou ao interior da sua residência para pegar as chaves da tipografia e seguido de Raimundo Maia abriu a redação, passando depois para as oficinas onde estavam colecionados os jornais daquele domingo. 
Retirando um jornal da coleção, Ezequiel passou às mãos de Raimundo Maia, que examinando atentamente o jornal por inteiro percorrendo todos os artigos, levantou a vista, encarando Ezequiel, declarou:


- Me disseram que havia aqui alguma coisa contra mim e Alexanzito. 
- Não, nada existe publicado no jornal nesse sentido - respondeu Ezequiel. 

 
Com o jornal aberto sobre uma banca da redação para um exame mais detalhado do que tinha sido publicado, Raimundo Maia ao lado de Ezequiel também debruçado sobre a mesma banca rasgou, um pedaço do jornal, o trecho onde estava publicada a história da multa, dizendo calmamente que ia levar para mostrar aos amigos. Ingenuamente Ezequiel disse que não era preciso rasgar o jornal que ele poderia levá-lo, ao que Raimundo Maia respondeu dizendo que só carecia daquilo mesmo. 

 
Considerando ter atendido ao pedido do visitante inoportuno, fora de hora, numa tarde de domingo, Ezequiel então se dirigiu para a saída da redação do jornal quando Raimundo Maia que vinha um pouco atrás passou à sua frente cortando-lhe o caminho, impedindo sua saída. Segurando nas mãos um papel amassado, Raimundo Maia, furioso e ameaçador, esbravejou: 

 
- Você agora vai engolir isto, mostrando o pedaço do papel do jornal todo amassado.


Ezequiel Menezes, homem pacato, manteve a calma diante da covarde agressão, censurando o gesto de violência que estava sofrendo. Nesse instante, Raimundo Maia então se dirigiu à porta de saída e, “introduzindo dois dedos à boca, soltou estridente assobio”. 

 
Compreendendo que aquele sinal era uma senha para um ataque criminoso e premeditado, Ezequiel sem condições de defesa procurou fugir daquele local da maneira que pôde, tendo Raimundo Maia ao seu encalço vociferando: 

 
- Não corra que morre... Não corra que morre... 

 
Ezequiel conseguiu sair da tipografia do jornal e entrou correndo em sua residência, o sobrado vizinho. Por não ter a agilidade do seu agressor, ao chegar ao corredor de sua casa foi agarrado por Maia, que sacando um punhal tentou golpeá-lo com intensão de matá-lo. Nesse exato instante, desesperada, chegou a esposa do Ezequiel e agarrou Raimundo Maia pelo pescoço, “obrigando-o a desviar o golpe que desferira”. 

 
Atendendo ao chamado pelo assobio do “chefe” entram de sobrado adentro os comparsas de Raimundo Maia: Domingos Narciso, Joaquim Monteiro Filho, Manoel Pilão e João de Dodô. O chefe, no afã de pegar o Ezequiel, que tentava de toda maneira escapar, ao avistar os seus comandados determinou aos gritos: 

 
- É para meter o pau... É para meter o pau... 

 
Domingos Narciso levantou então um grosso cacete que trazia na mão e partiu pra cima de Ezequiel, que acuado diante dos seus agressores, mesmo assim conseguiu escapar, forçando a passagem entre a parede do corredor e os móveis, chegando à porta de saída.  Atravessando a rua às carreiras escondeu-se numa casa que ficava em frente a seu sobrado. 

 
A esposa de Ezequiel, seus cinco filhos e sua mãe que permaneceram dentro do sobrado, numa dependência protegida dos atacantes, puderam ouvir a destruição da redação e das oficinas do jornal A Região. Tudo foi destruído. O prelo, os tipos, caixas, “tudo isso entre os mais grossos palavrões que se podiam imaginar”. 

  

A IMPUNIDADE 

 
Terminado o “serviço,” não de todo satisfeito com a missão cumprida, Raimundo Maia que exercia o cargo de agente da polícia marítima há muito tempo em Aracati, dirigiu-se então para frente do cinema [5] do Sr. Durval Costa Lima, irmão do prefeito Cel. Alexanzito Costa Lima, onde se encontrava bastante gente e, entre risadas e zombarias, relatou para todos os presentes o que acabara de consumar. 

 
Insatisfeito ainda com as ocorrências que havia praticado Raimundo Maia, quando se dirigia para sua residência, ao encontrar o cidadão João Gurgel Barbosa, a quem considerava adversário político, de revólver em punho chamou-o para brigar. Ao chegar à sua casa [6], que ficava em frente à residência [7] do Tabelião Ricardo Nunes de Deus, na Rua do Comércio [8], Raimundo Maia continuou com seus desaforos a todos que considerava como adversários. 

 
Um ano depois do empastelamento do Jornal A Região, o seu editor e proprietário Ezequiel Menezes, através da edição do seu jornal já recomposto, do dia 25 de março de 1929, relatava sua indignação e revolta pelo episódio: 

 
“Um ano já se passou na ampulheta inexorável do tempo, que a população do Aracati presenciou, estupidificada, a mais revoltante e injustificável cena de selvageria, de quantas há notícia nos fastos desta terra!” 

 
O desabafo do jornalista se voltava contra o então delegado de Polícia da época da invasão e destruição do seu jornal, que era delegado militar, o capitão de Polícia Peregrino Montenegro, assim como também ao Prefeito Alexanzito Costa Lima, a quem responsabilizava por ter “importado para o policiamento desta cidade o atrabiliário capitão Peregrino Montenegro, que mesmo tendo ciência do ocorrido e da atitude posterior do Raimundo Maia pelas ruas da cidade, nenhuma providência tomou.” E concluiu: 

  

“Mas era assim infelizmente o que ocorria naquela época de horrores e perseguições com todos os que se recusavam ao papel de capachos”. 


[1] Atualmente Av. Cel. Alexanzito nº 723. 
[2] Jornal Fundado em Março de 1924 pelo Jornalista Ezequiel Menezes. 
[3] Atual Av. Cel. Alexanzito nº 729. 
[4] Policial da Antiga Policia Marítima do Aracati. 
[5] Localizada na Atual Av. Cel. Alexanzito nº 1110. 
[6] Localizada na Atual Av. Cel. Alexanzito nº 303. 
[7] Localizada na Atual Av. Cel. Alexanzito nº 278. 
[8] Atualmente Av. Cel. Alexanzito. 

 

Lido 431 vezes Última modificação em Wednesday, 09 November 2022 21:19
Antero Pereira Filho

ANTERO PEREIRA FILHO, nasceu em Aracati-CE em 30 de novembro de 1946. Terceiro filho do casal Antero Pereira da Silva e Maria Bezerra da Silva, Antero cresceu na Terra dos Bons Ventos, onde foi alfabetizado pela professora Dona Preta, uma querida amiga da família. Estudou no Grupo Escolar Barão de Aracati até 1957 e, a partir de 1958, no Colégio Marista de Aracati, onde concluiu o Curso Ginasial.
Em 1974, Antero casou-se com Maria do Carmo Praça Pereira e juntos tiveram três filhos: Janaina Praça Pereira, Armando Pinto Praça Neto e Juliana Praça Pereira. Graduou-se em Ciências Econômicas pela URRN-RN em 1976 e desde então tem se destacado em sua carreira profissional.
Antero atuou como presidente do Instituto do Museu Jaguaribano em duas gestões (1976-1979/1982-1985) e foi secretário na gestão do prefeito Abelardo Gurgel Costa Lima Filho (1992-1996), responsável pela Secretaria de Indústria, Comércio, Turismo e Cultura.
Além de sua carreira profissional, Antero é conhecido por seus estudos sobre a história e a memória da cidade e do povo aracatiense, amplamente divulgados em crônicas e artigos publicados na imprensa local desde 1975. Em 2005, sua crônica "O Amor do Palhaço" foi adaptada para o cinema em um curta-metragem (15") com direção de seu filho, Armando Praça Neto.

Obra

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