Aracati

Sunday, 12 January 2014 17:48

CHEIA DE 1924

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Rua Cel. Alexanzito. Cheia de 1924. Rua Cel. Alexanzito. Cheia de 1924. Abílio Monteiro

Já era quase madrugada quando ao som dos últimos acordes da marcha carnavalesca "Vamos pro mato Yayá... Vamos pro mato morar... Vão marchando que eu vou já," que fora sucesso no carnaval anterior, o bloco Intrépidos Foliões deu a derradeira volta no salão nobre da Casa da Câmara encerrando o baile à fantasia organizado pelos senhores Cel. Alexanzito Costa Lima e Alfredo Goiana, que reuniu a fina flor da sociedade aracatiense na terça-feira de carnaval, dia 4 de março de 1924. 

Ao descerem a corroída escadaria de pedra da vetusta Casa da Câmara, foram surpreendidos por uma leve neblina que aos poucos foi se tornando num sereno mais intenso e finalmente numa fina chuva que pegou a todos de surpresa. 

 
Major Bruno Figueiredo mais prevenido do que os outros havia deixado seu automóvel Studebaker aos cuidados do seu chauffeur Peninha que o aguardava para levá-lo juntamente com sua esposa Dª Izaura Figueiredo para sua residência de veraneio situada na Vila Izaura. 

 
O Cel. Alexanzito Costa Lima e sua esposa Dª Egisa Leite Costa Lima e demais participantes do baile, seguiram a pé debaixo da leve chuva pela Rua do Comércio até suas residências todas localizadas na redondeza ao longo da citada Rua do Comércio, hoje Cel. Alexanzito. 

 
Ainda não havia por parte das autoridades nem mesmo da população, nenhuma preocupação com uma possível enchente. É fato que as chuvas de janeiro e fevereiro e do começo de março, fizeram o Rio Jaguaribe chegar aos lugares mais baixos da cidade fazendo com que algumas famílias se retirassem de suas casas. No entanto, no final do mês de março, as águas do rio haviam baixado, e as notícias que chegavam do sertão eram de que as águas estavam baixando em todos os lugares. Isto criava um alívio geral e uma esperança de que as pessoas que se retiraram de suas casas na parte mais baixa da cidade logo pudessem retornar. 

  

Além do mais, a população acreditava numa antiga superstição de que: "somente quando o rio subia no Beco do Antônio Roberto, conhecido por Xibau, podia contar que a cidade ia ser invadida totalmente e preparar a subida dos móveis para os andares superiores e fazer a arrumação das trouxas para o embarque próximo, pois era cheia total." Coisa que ainda não tinha acontecido. Talvez essa crendice tenha sido a causa do descuido com o perigo que na verdade se aproximava mais rápido do que se podia imaginar. 

  

 
Sem preocupação com a provável enchente, no dia 28 de março, foi oferecido um "sarau dançante" em homenagem ao comerciante sócio da firma Casa Costa Lima, senhor Mirtyl Meyer que visitava a cidade no Club dos Diários, onde compareceu o high-life da sociedade aracatiense. Na ocasião da festança foi oferecido a todos os presentes profusas taças de champanhe. 

 
O prefeito major Bruno Figueiredo viajou no navio Camocim para Recife no dia 10 de abril para tratar de negócios. A história não registra se o prefeito tinha conhecimento do que estava prestes a acontecer. A verdade é que dois dias depois da partida do prefeito major Bruno ao Recife, as águas invadiram o Aracati e tomaram conta da cidade como assim nos relata a reportagem do jornal a Região na sua edição do dia 18 de maio de 1924. 

 

 
Pavorosa Inundação da Cidade 
O Jaguaribe transformado num mar de água doce 
Trevas e rebates – Desabamentos – A população tomada de pânico abandona a cidade – Prejuízos colossais. 

 
Em Aracati o povo já tinha visto a cheia de 1917 que foi rápida embora com enormes prejuízos, assim como as cheias de 1921 e 1922 que foram diversões diante deste de 1924. Apesar dos constantes avisos do telégrafo que avisava a provável enchente, a população até mesmo ria dos avisos do telegrafista Ney que estava sempre avisando das notícias que recebia das cabeceiras do rio Jaguaribe e seus afluentes. 

  

De suas lembranças da cheia de 1924, Dr. Eduardo Alves Dias, num breve resumo, descreveu o que presenciou naqueles atormentados dias: 

 
... Saí de casa às 10 horas para fazer uma délivrance no Pátio D. Luís, tomei uma canoa numa ruazinha que fica por detrás da Rua da Parada, atualmente Santos Dumont, estive por lá cerca de hora e meia no máximo. Ao regressar desembarquei na porta de casa, o rio ameaçando entrar. 

A tarde desse mesmo dia, já tínhamos dentro de casa "meio metro de água." No dia seguinte mais de "metro e meio." A nossa casa fica numa das ruas mais altas da cidade, a Rua do Comércio, atualmente Cel. Alexanzito. Mudei-me na véspera para o sobrado de Mamede Pontes, na esquina sul no Beco do João do Rego Falcão, atualmente Travessa Costa Barros. 
À noite saímos para o Jardim, o rio havia tomado conta da cidade. 
Foi, portanto, rápida a enchente. O volume d'agua assombrou o de outras cheias por mim assistidas: 1917, 1921, 1922 sem falar as menores. Em 1924 foram desmoronadas 47 casas de alvenaria, muros de muita habitação e mais de 100 choupanas foram desmoronadas... 

  

As primeiras enchentes começaram ainda nos meses de janeiro, fevereiro e março. Entretanto as águas somente começaram a invadir a cidade a partir do dia 11 de abril, uma sexta-feira, e mesmo assim o povo ainda ria da situação sem acreditar no que estava por vir. No entanto, a tarde desse dia começou a apreensão do povo com a velocidade da enchente que começava a tomar as ruas da cidade. A noite então foi de terror, pois as águas já no dia 12 e 13 de abril tomavam conta da cidade. Era o salvem-se quem puder. 

 
Da imprevidência resultou o desastre; a cidade cheia de gente as várzeas cercadas de água e cheias de animais, os armazéns e as casas comerciais tomadas de repente pelas águas. 

 
Como não se prepararam para a enchente, pois acreditavam que não aconteceria a população foi tomada de surpresa, por isso as casas comerciais quase não tiveram tempo de salvar suas mercadorias colocando-as em lugares mais altos, assim como igualmente com os criadores que foram surpreendidos pelas águas com seus animais nos cercados sem condições devido a invasão das águas, os conduzir a salvo para lugares mais altos. 

  

Aqueles mais previdentes levantaram as mercadorias acima da medida da cheia de 1917 e levaram o gado para lugares mais altos, mesmo não acreditando que a cheia fosse maior do que a de 1917. 

 
Mero engano: Na tarde do dia 12 de abril, no entanto, a marca de 1917 fora ultrapassada apenas 24 horas antes o rio havia entrado na cidade. 

  

Antônio da Rocha Guimarães em se livro "Memorias de Antônio da Rocha Guimarães" recorda sua experiência vivida na enchente de 1924: 

 
Lembro bem da marchinha do carnaval; "Vamos pro mato morar Yayá..." Vão marchando que eu já vou". Lembro perfeitamente que estávamos dormindo quando acordamos de manhã, vi os penicos boiando como verdadeiros barquinhos de papel. 

Nossa casa ficava na Rua do Comércio nº 210, quando levantei assustado coloquei os pés dentro da água, pois o Rio Jaguaribe havia invadido nossa casa. Como dormíamos em rede a água não nos atingiu. 

Foi então que começou a correria para apanhar tudo que fosse possível para salvar da enchente. Nosso avô providenciou um barco e embarcamos para a fazenda que ficava na margem esquerda do Rio Jaguaribe no Porto José Alves. 

Na cheia de 1924 muitas famílias eram embarcadas pelas varandas dos sobrados de tão alta estava a água dentro da cidade, e todos tinham que correr para salvar as próprias vidas antes que começassem os desmoronamentos em consequência dos redemoinhos. 

O difícil, além de sair da cidade inundada era transpor a correnteza violenta causada por um rio de 500 metros de largura habitualmente, transformado numa largura de mais de 2.000 metros. 

Para evitar a correnteza era preciso sair com o barco a vela pela parte mais oeste da cidade denominada "Cruz das Almas", onde havia um campo de futebol, para cruzar o rio na direção do Tomé e deixar o barco ser levado pela correnteza até o Porto José Alves onde ficava a fazenda. 

O rio estava cheio de barreira a barreira sem enxergar a margem direita que havia se confundido com as ruas de Aracati e o casario submerso. 

Antes que a cidade fosse limpa meu pai começou a trabalhar na sua loja retirando as peças de fazenda que ficaram molhadas pelas águas da cheia, mesmo as que ficaram em cima do balcão. [...] 

  

Foi uma noite de terror a noite do 12 de abril dentro da cidade. A todo o momento se ouvia gritos de socorros, sinos tocando rebate, embarcações cruzando pejadas de gente cujas casas ficaram em completo abandono, animais vagando atoa sem seus donos e sem socorro aos berros as sabor da correnteza, aos berros, clamorosamente entregues ao desespero dos desamparados. 

 
Os desabamentos de casas foram contínuos. Houve quarteirões completamente destruídos. A Rua do Rosário a mais nova da cidade foi a que mais sofreu. A torre da igreja do Rosário do flanco direito caiu por completo. Nessa rua conta-se que mais de doze casas boas desmoronaram ou ficaram danificadas. Em toda a cidade 45 casas boas de alvenaria, inclusive sobrados foram destruídas pela base. 

 

 
As lanchas entravam e saíam da cidade abarrotadas de gente conduzindo famílias e animais domésticos juntos com as bagagens para o Alto da Cheia e a Beirada locais escolhidos pelas autoridades para despejar a multidão. 

  

Em uma de suas crônicas lidas na Rádio Cultura de Aracati, no seu programa; Domingo Cultural, o jornalista Antônio Figueiredo Monteiro fez referência às suas lembranças da enchente de 1924: 

  

Em 1924 ocorreu em Aracati a maior inundação verificada no Ceará e em todo o Nordeste. Essa inundação denominada de "grande cheia do rio Jaguaribe" atingiu dentro da cidade, no centro da cidade, aproximadamente dois metros de altura sendo incalculáveis os seus estragos. Mais de uma centena de casas ruíram sob o impacto das águas, inclusive a Igreja do Rosário que desabou uma torre e todo o quarteirão onde funcionou o Posto de Saúde da Fundação SESP na Rua do Rosário, atualmente Cel Pompeu. 
A população da cidade foi toda evacuada em lanchas para Viçosa, Fortim e outras localidades próximas do Aracati. 
Os desabrigados de 1924 sofreram muito com o rigor da calamidade. As lanchas que evacuavam a população evacuavam também os animais, cavalos, jumentos etc... 
Em 1924 fomos nos abrigar no sítio Viçosa do Senhor José Scipião na sua casa de farinha; lembro-me que deixamos o Aracati numa pequena e frágil embarcação, passamos por sobre o cemitério o qual apresentava apenas descobertos os mais altos túmulos e a cruz da capela. Isto aconteceu porque meu pai que era muito teimoso fez um estrado dentro de casa e só saiu da mesma quando as águas do rio Jaguaribe transpuseram as suas janelas. 

  

Na primeira invasão das águas que já haviam subido no dia 13 de abril, 75 centímetros acima da cheia de 1917, deu uma leve parada trazendo uma pequena esperança de que dali não passaria. Isso fez com que várias famílias tivessem a intenção de voltar à cidade; no entanto as águas voltaram a subir com mais intensidade e no dia 24 de abril excedeu mais ainda 30 centímetros. 

  

Em depoimento ao autor desse trabalho, Abelardo Gurgel Costa Lima ao relembrar a cheia de 1924 fez um relato dos acontecimentos e do aspecto da cidade e dos personagens que povoavam o Aracati naquela ocasião: 

  

A Rua do Comércio- atualmente Cel. Alexanzito- era muito baixa um verdadeiro leito de rio na época do inverno. 

Em 1924, eu me lembro dos barcos grandes, das barcaças aqui dentro da rua e nós descendo pelas varandas do sobrado para dentro dos barcos já quase 1 metro aqui dentro do sobrado1 . As famílias se retirando para o Cantinho. 

Lembro-me do nosso trajeto. O barco era comandado pelo Vicente Marques; quando chegou ali em frente à Cadeia entramos no beco que se chamava Beco da Cacimba da Rua porque ali existiu um grande cacimbão. 

Lembro bem que do Beco da Cacimba da Rua para Matriz não tinha casa nenhuma, somente existia a casa da fábrica. 

Da várzea da Matriz seguimos pela várzea e passamos pelas "três irmãs"2 e fomos para o sítio Cantinho que era do meu avô João Adolfo Gurgel do Amaral. 

Lembro que caiu uma torre do Rosário. Na época eu estudava no Externato Santa Clotilde de Dª Chiquinha Clotilde. 

Aracati já era naquele tempo meio triste; vamos dizer quase decadente. As ruas não tinham calçamento. Quando chovia ficava tudo alagado, para se atravessar de um lado para outro da rua, tinha que ser nos braços dos carreteiros, etc. 

Os chefes políticos era Alexanzito Costa Lima e o Major Bruno Figueiredo que na época era o Prefeito. 

As casas comerciais mais importantes eram: Casa Costa Lima & Mirtyl, J. Klein Figueiredo e Cia, J. Correia, etc... Essa Rua Grande era a Rua do Comércio, das lojas. A Rua Direita, atualmente Cel. Alexandrino, era fundo de quintal. 

Da esquina dos Prazeres para a Cruz das Almas não existia nada. Nesse tempo já existia a luz elétrica, os carros de luxo eram o automóvel Buick do Alexanzito e o Studebaker do Major Bruno, os motoristas eram Yoyô do Alexanzito e o Peninha do Major Bruno. 

  

Quem pôde ver a cidade após baixarem as águas dias antes da segunda invasão, teve de ver um quadro desolador de animais mortos, presos nos cercados, encalhados nas croas, presos às carnaubeiras, exalando podridão. 

  

Não ficou uma casa limpa, todas receberam o batismo de lodo das águas barrentas do rio Jaguaribe. 

 
No imaginário do povo ficou a certeza de que a causa da trágica enchente foi um castigo, em decorrência da marchinha carnavalesca mais cantada no carnaval de 1924 que dizia: "Vamos pro mato Yayá... Vamos pro mato morar Yayá... Vão marchando que eu vou já." Na verdade, a população inteira da cidade teve que ir mesmo para os matos para escapar da fúria das águas do rio Jaguaribe. 

 
Como sempre acontece nessas ocasiões, o roubo e a ladroagem se fizeram presentes tanto nas distribuições de alimentos como nos arrombamentos das casas comerciais e nos pertences das famílias desabrigadas. 

  

Os prejuízos foram calculados em 10 mil contos de réis. As firmas de Aracati todas sofreram enormes prejuízos; Todavia J. Correia Cia. sofreu mais em decorrência do desabamento dos seus armazéns. M. L. Barbosa proprietários da Fábrica Santa Tereza ficaram com seus maquinários totalmente enferrujados. J. Klein Figueiredo & Cia. sofreu um grande prejuízo com o naufrágio do seu iate Salvador que foi a pique na barra do rio Jaguaribe devido a correnteza; além das outras firmas que também sofreram bastante com a enchente como foi o caso da Casa Costa Lima & Mirtyl, Bruno Porto & Cia., Klein & Cia. etc... 

  

As ajudas chegaram por intermédio do Presidente do Estado Idelfonso Albano que a pedido do nosso Prefeito Major Bruno Figueiredo, nos mandou uma carga no vapor São Vicente que não podendo entrar em nossa barra por causa do assoreamento teve que fundear fora da barra, ainda no dia 16 de abril de 1924. Para transportar essa mercadoria até um local perto de Aracati, foi necessário vir de Fortaleza o iate São Luís que prestou aqui inúmeros serviços ajudando no transporte das famílias desalojadas. 

 
A cidade de Mossoró nos mandou uma barcaça com oito contos de réis em mantimentos que foram descarregados em Canoa Quebrada. A cidade de Quixadá através da Associação Comercial de Aracati enviou três contos de réis e o nosso Arcebispo D. Manuel mandou como ajuda da Igreja um conto de réis. 

 

Lido 548 vezes Última modificação em Friday, 04 November 2022 09:01
Antero Pereira Filho

ANTERO PEREIRA FILHO, nasceu em Aracati-CE em 30 de novembro de 1946. Terceiro filho do casal Antero Pereira da Silva e Maria Bezerra da Silva, Antero cresceu na Terra dos Bons Ventos, onde foi alfabetizado pela professora Dona Preta, uma querida amiga da família. Estudou no Grupo Escolar Barão de Aracati até 1957 e, a partir de 1958, no Colégio Marista de Aracati, onde concluiu o Curso Ginasial.
Em 1974, Antero casou-se com Maria do Carmo Praça Pereira e juntos tiveram três filhos: Janaina Praça Pereira, Armando Pinto Praça Neto e Juliana Praça Pereira. Graduou-se em Ciências Econômicas pela URRN-RN em 1976 e desde então tem se destacado em sua carreira profissional.
Antero atuou como presidente do Instituto do Museu Jaguaribano em duas gestões (1976-1979/1982-1985) e foi secretário na gestão do prefeito Abelardo Gurgel Costa Lima Filho (1992-1996), responsável pela Secretaria de Indústria, Comércio, Turismo e Cultura.
Além de sua carreira profissional, Antero é conhecido por seus estudos sobre a história e a memória da cidade e do povo aracatiense, amplamente divulgados em crônicas e artigos publicados na imprensa local desde 1975. Em 2005, sua crônica "O Amor do Palhaço" foi adaptada para o cinema em um curta-metragem (15") com direção de seu filho, Armando Praça Neto.

Obra

Assim me Contaram. (1ª Edição 1996 e 2ª Edição 2015)
Histórias de Assombração do Aracati. Publicação do autor. (1ª Edição 2006 e 2ª Edição 2016)
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