Aracati

Thursday, 27 December 2018 10:15

A LUTA DE BOXE

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Chico de Janes foi por muito tempo o principal hoteleiro da cidade de Aracati. O Hotel Central era uma referência para quem viesse ao Aracati e precisasse de hospedagem.

Nesse período aconteceram muitos fatos engraçados, cômicos e divertidos. No entanto, uma história que nos foi contada pelo nosso querido e saudoso amigo José Rangel Zaranza, teve momentos dramáticos e de intenso aperreio para o nosso travesso Chico de Janes.

Num começo de noite chegou ao Hotel Central um Negão com quase dois metros de altura trazendo consigo uma pequena maleta de couro cru pedindo um quarto para dormir.
Chico de Janes a princípio estranhou aquela figura, mas como não podia recusar um hóspede somente baseado na aparência, aceitou o novo inquilino levando-o até o quarto que estava desocupado.

De manhã cedo o tremendo Negão acordou-se e foi até a cozinha do hotel pedir um café reforçado, pois o que estava sendo oferecido no cardápio não o satisfazia. Exigiu que se passasse um bife acebolado com manteiga Patrícia, acompanhado de 6 dúzias de pães, ovos em quantidade bem passado, uma jarra de leite de vaca e um bule de café preto bem forte. Para adoçar queria rapadura, pois não usava açúcar que estragava os dentes.

A moça encarregada da cozinha, incrédula com que ouviu, ficou sem ação. Bem depressa foi chamar Chico de Janes e contou o pedido do novo hóspede:
- Seu Chico, esse Negão que chegou ontem à noite num é gente não! Escute o que ele pediu para o café da manhã. E desembuchou o pedido do Negão para o patrão.
Chico, antes de qualquer consideração, ficou mudo diante desse absurdo que se apresentava logo cedo sem nenhuma previsão. Pensou em se dirigir ao hóspede e ter uma conversa com ele e contar das precariedades da cidade no que se referia a abastecimento de víveres e, por conseguinte as dificuldades do próprio hotel. Mas pensando bem – avaliou – quem pede um café extra desse deve ter como pagar. Portanto, era melhor não cutucar a fera com desconfiança.

Na hora do almoço o Negão extrapolou. Queria uma “mão de vaca” que tivesse osso com tutano e não faltasse nada dos ingredientes como jerimum, batata doce, quiabo, maxixe, alho, cenoura, acompanhado de uma travessa de pirão escaldado não esquecendo o caldo para finalizar o cozido...

Na hora do jantar, cujo cardápio do hotel oferecia somente uma leve sopa de galinha e cuscuz com café para os hospedes, o Negão refugou na hora, exigindo uma peixada de serigado ou arabaiana, pois não acreditava que numa cidade praiana não tivesse esses tipos de iguarias e pescado que ele tanto apreciava...

Durante o dia o Negão andava por toda cidade causando admiração pelo seu porte e curiosidade às pessoas. Por isso tornou-se motivo de comentários e conhecido por todo povaréu.

Essas exigências e o cumprimento desses pedidos tiveram a duração de uma semana, tempo que Chico de Janes se preparou para enfrentar o Negão e expor sua dificuldade para continuar a dar despacho aos seus rogos.

Foi ao final de uma dessas caminhadas pelas ruas da cidade que Chico de Janes tomou coragem de abordar o Negão:
- Senhor? Montanha Seu Chico, pode me chamar de Montanha, esse é o meu nome de guerra, ou melhor, artístico.
- Seu Montanha, não quero ser desagradável com o senhor, mas gostaria que o senhor entendesse a minha situação. O nosso Hotel é pequeno com poucas condições, como o senhor mesmo pode notar, por isso vim falar com o senhor para que possa me adiantar algum dinheiro, pois nessas condições não posso mais arcar com seus desejos alimentícios na proporção que o senhor necessita.
- Seu Chico, não tiro sua razão não, mas preciso contar minha história para o senhor para que a gente possa arranjar uma solução pra esse problema. Seu Chico, eu venho fugindo dum circo. Briguei com o domador de leão, coisa de mulher, o senhor sabe né? Pois bem, eu sou pugilista, lutador de boxe. Na briga acertei um golpe lá no homem e parece que o negócio fedeu. Tive que fugir do circo somente com aquela malinha que cheguei aqui. Naquela maleta tenho meus instrumentos de trabalho que são minhas luvas de boxe e algumas roupas que pude pegar na pressa de fugir. Já andei pela cidade conversando com algumas pessoas querendo fazer uma luta de boxe pra que pudesse recolher algum dinheiro e lhe pagasse, mas até hoje não consegui nada. O senhor que tem conhecimento com o povo da cidade poderia conseguir essa luta é assim resolveríamos o problema. Senão, o senhor tem que ter paciência comigo.

Chico de Janes ficou sem acreditar no que ouvia. Na verdade, nunca ficara tão desnorteado na vida diante de uma situação. A solução mais lógica seria pedir ao Montanha que fosse embora, mas como fazer essa sugestão pra uma montanha daquela quando ele já disse que a única solução seria a luta de boxe? Expulsá-lo? Impossível. O policiamento da cidade não passava de três soldados e todos pais de família. Seria um suicídio da parte deles e um assassinato por parte de quem chamasse para cumprir essa tarefa.
Chico lembrou-se de quando fora Delegado da Policia Civil, o trabalho que lhe dera os valentões da Infunca e da Gamboa: Constantino, Catanduba, Valdenor, Cobra Preta, Zé de Leôncio, sempre deixando por menos as estripulias que faziam. Havia, portanto, talvez fosse a hora, de um pagamento por parte deles contribuindo ou participando dessa luta benfazeja ao seu favor.

Na boca da noite Chico de Janes tomou o rumo da Infunca para falar e tentar convencer os tais valentões de topar essa luta com Montanha para que ele pudesse se ver livre de tal criatura o mais rápido possível, pois do jeito que a coisa ia não tinha condições de manter em funcionamento o tradicional Hotel Central.

- Amigo Constantino vim aqui lhe fazer uma proposta boa que vai lhe render um dinheirinho e ainda vou ficar devendo o favor.
- De que se trata seu Chico?
- Rapaz é um cara que tá hospedado lá no Hotel, e para pagar a hospedagem tá querendo promover uma luta de boxe. Como eu sei que você nunca foi de fugir da raia pra ninguém e sempre foi muito bofeteiro me lembrei de você.
- Quem é o cara seu Chico?
- O nome dele é Montanha.
- Vou nada, seu Chico. Conheço ele. Já andou por aqui pela Infunca, seu Chico. Aquele Negão tem o bofete mais poderoso que o de Catanduba. A mão dele, eu vi, é maior do que a de Antônio Fernandes lá do Jardim. Nem o senhor me dando o seu Hotel, seu Chico. Me peça outra coisa.

A ladainha foi a mesma com todos os valentões, ninguém se atrevia a enfrentar Montanha. Não era medo de apanhar não, era medo mesmo de morrer que acovardava os valentões da Infunca e da Gamboa.

Desolado, Chico de Janes fez uma promessa pedindo ao seu santo protetor que lhe mostrasse um caminho, uma saída, para se livrar daquele encosto que apareceu no seu Hotel e não havia meio humano que se revelasse evidente.

Chico de Janes que há muito não ia à missa, resolveu ir à celebração da madrugada na Igreja do Rosário. Estava contrito na sua oração esperando que um milagre acontecesse, quando de repente ao levantar a vista para o altar mal iluminado, avistou a figura franzina e raquítica de Zequinha sacristão que ajudava às missas da madrugada.
Ao terminar a missa, Chico procurou Zequinha na sacristia chamando-o a um canto da sala:

- Zequinha vim à missa hoje com a intenção de falar com você.
- Comigo, seu Chico? Do que se trata?
- Zequinha tem um hospede lá no Hotel que tá com a mãe dele muito doente em São Paulo. Ele chora de dia e de noite querendo ir visitar a mãe, mas não tem o dinheiro para as passagens. E como eu sei que você é muito caridoso tenho certeza de que vai ajudar.
- Ajudar como? Dinheiro o senhor bem sabe que não tenho. Minha vida é a Igreja. Não tenho divertimento porque minhas posses não me dão esse direito.
- Não Zequinha, não é dinheiro não. Basta você participar de uma brincadeira. Espécie de drama. Coisa ensaiada. Sem problema nenhum. Vai ser uma caridade que você vai fazer.
- Agora o senhor bateu no meu ponto fraco: caridade. Como vai ser esse tal drama?
- Zequinha, vai ser uma luta de boxe, mas tudo no faz de conta sem violência, só no faz de conta, pode confiar. O rapaz é gente boa precisa dessa ajuda.
- Seu Chico, que história é essa de luta? Eu nem sei o que é luta quanto mais lutar!
- É tudo ensaiado Zequinha, pode confiar que essa caridade que você vai fazer irá lhe abrir as portas do céu.
- Tá certo seu Chico, como o motivo é uma caridade eu concordo.

A súplica do Chico de Janes foi prontamente atendida por seu santo protetor, mostrando Zequinha como adversário de Montanha na luta de boxe do ano a ser efetuada no Aracati de acordo com seus traquinos pensamentos.

Quem primeiro recebeu a notícia que a luta de boxe seria realizada foi Montanha:

- Seu Montanha, arranjei um adversário para o senhor. Se prepare porque o rapaz que vai lutar com você é franzino, mas é bofeteiro.

Montanha que estava comendo uma corda de caranguejo quase ficou entalado com o bicho todo dentro da boca e as patas do lado de fora.
Depois de mastigar e engolir o caranguejo inteiro inclusive as patas numa só mordida, Montanha perguntou:

- Quando vai ser a luta?
- No domingo agora, depois da missa da madrugada, porque o rapaz tá ansioso para lhe enfrentar.

Montanha depois de destroçar a corda de caranguejo seguiu para seu quarto e quando voltou já vinha vestido com as luvas de boxeador como se estivesse pronto para a luta.
Foram dois dias de treino sem parar dando murros no muro do hotel que balançava todo prédio. Montanha estava empenhado na luta e preocupado com o adversário franzino e bofeteiro.

Chico de Janes avisou pra todo mundo, da luta que aconteceria entre Montanha e o sacristão Zequinha. Só quem não sabia quem era Montanha no Aracati, era exatamente o pobre do Zequinha que não tinha a menor noção do que o esperava. Como todo Aracati já conhecia as travessuras do Chico de Janes, principalmente no carnaval, sabia que daquela luta sairia alguma coisa muito divertida.

O palco da luta foi o tradicional bar que existia em Aracati, quase em frente ao Bonfim, o Maison Moderne. O ringue era um tablado cercado de cordas onde iriam se enfrentar Montanha versus Zequinha “o bofeteiro” como dizia a propaganda anunciada na irradiadora na voz do locutor Zé Lobo.

Uma multidão acorreu ao Maison Moderne lotando o ambiente da luta. Chico de Janes na bilheteria era uma alegria sem forma com o apurado. Seu prejuízo com Montanha estava sanado e ainda ia sobrar algum para despachar Montanha pra bem longe do Hotel Central.

No centro do ringue, o leiloeiro Nemésio fazia o papel de juiz e anunciante do confronto apresentando os contendores: ao lado direito do ringue o insuperável Montanha com 120 quilos e dois metros de altura; ao lado esquerdo, Zequinha, o bofeteiro, com 40 quilos e um metro e cinquenta e seis de altura.

Vamos à luta...

Zequinha, coitado, vestido com um calção frouxo que lhe chegava até os joelhos, era a imagem da inocência. Atordoado, com as luvas penduradas que de tão pesada não conseguia levantar, não entendia nada do que estava se passando, corria o olhar no meio da multidão, aflito, buscando os olhos do protetor e amigo Chico de Janes e não encontrava.

Montanha, de punhos cerrados e olhos fixos em Zequinha, fazia aquela dança dos pugilistas profissionais tomando partida para o ataque.

Zequinha foi empurrado para o meio do ringue zonzo com os gritos da turba que gritava sem parar: - Vai Zequinha... Vai Zequinha... Vai Zequinha... Zequinha não foi, mas Montanha veio com força e determinação aplicando um soco direto e certeiro no queixo de Zequinha que feito um sibite, um beija-flor plainando no ar, flutuou sobre a multidão caindo desmaiado ao pé da bilheteria feito um embrulho mal-feito.

Chico de Janes, vendo o estrago, correu para o centro do ringue onde Montanha de punhos erguidos festejava a sua vitória e diz ao seu ouvido aos gritos quase abafados pela explosão de gargalhadas e risos do povaréu em regozijo pela cena sangrenta:

- O homem morreu! Acho bom o senhor fugir logo, antes que a polícia chegue seu Montanha.

A alegria afastou-se do rosto de Montanha dando lugar ao pávido terror. Baixou os punhos e, procurando uma brecha no meio da multidão que se acotovelava para ver Zequinha estendido no chão, saiu de mansinho do jeito que estava só de calção e luvas de boxe pelo Beco do Velame aumentando a velocidade dos passos ao se aproximar da beira do Rio Jaguaribe mergulhando fundo e em grandes braçadas nadava feito um desesperado fugindo da cena do crime.

Chico de Janes, satisfeito com o dinheiro apurado, voltou ao Hotel Central, não sem antes levar consigo o amigo Zequinha ainda desmaiado para casa. Seu Lulu Enfermeiro foi quem cuidou dos ferimentos do sacristão com todo zelo.

Passaram-se muitos dias sem a presença do Zequinha na missa da madrugada realizada no Rosário. Sempre que podia, Chico de Janes ia à missa da madrugada para ver se encontrava Zequinha e saber do seu estado de sua saúde. Pois bem, foi numa dessas missas da madrugada já perto da festa de São Sebastião que Chico voltou a ver Zequinha de sacristão. Ao findar a missa, foi até a sacristia para falar com Zequinha. Ao avistá-lo Zequinha perguntou com a boca murcha:

- O senhor veio me pedir para fazer mais uma caridade?
- Não Zequinha, vim saber como você está. Aquele sujeito também me enganou. Ele me prometeu uma coisa e fez outra. Eu também acreditei na história dele. Nós fomos enganados. Mas o que vale é a intenção, não é?
-É, mas o prejuízo ficou pra mim. Não lembro nada daquele dia. Quando acordei foi que senti que tinha perdido a dentadura que seu Chico Porto tinha feito. E agora tou assim de boca murcha sem nem poder sorrir...
- Num tem quem note, Zequinha. Respondeu Chico virando o rosto para o telhado para esconder o riso envergonhado.

Chico de Janes ainda guardou por muito tempo a maleta de couro cru deixada por Montanha na pressa de fugir. Quem sabe um dia ele aparece... Imaginava. No entanto, num carnaval, resolveu abrir a maleta e ver o que tinha dentro. Do que podia se aproveitar, tirou um roupão de pugilista e vestiu o Mudo que desfilou numa jaula em cima de um caminhão e um cinturão cheio de arrebites que ele enfeitou Dora, outra de seus protagonistas nos desfiles do carnaval.

Lido 597 vezes Última modificação em Sunday, 06 November 2022 15:25
Antero Pereira Filho

ANTERO PEREIRA FILHO, nasceu em Aracati-CE em 30 de novembro de 1946. Terceiro filho do casal Antero Pereira da Silva e Maria Bezerra da Silva, Antero cresceu na Terra dos Bons Ventos, onde foi alfabetizado pela professora Dona Preta, uma querida amiga da família. Estudou no Grupo Escolar Barão de Aracati até 1957 e, a partir de 1958, no Colégio Marista de Aracati, onde concluiu o Curso Ginasial.
Em 1974, Antero casou-se com Maria do Carmo Praça Pereira e juntos tiveram três filhos: Janaina Praça Pereira, Armando Pinto Praça Neto e Juliana Praça Pereira. Graduou-se em Ciências Econômicas pela URRN-RN em 1976 e desde então tem se destacado em sua carreira profissional.
Antero atuou como presidente do Instituto do Museu Jaguaribano em duas gestões (1976-1979/1982-1985) e foi secretário na gestão do prefeito Abelardo Gurgel Costa Lima Filho (1992-1996), responsável pela Secretaria de Indústria, Comércio, Turismo e Cultura.
Além de sua carreira profissional, Antero é conhecido por seus estudos sobre a história e a memória da cidade e do povo aracatiense, amplamente divulgados em crônicas e artigos publicados na imprensa local desde 1975. Em 2005, sua crônica "O Amor do Palhaço" foi adaptada para o cinema em um curta-metragem (15") com direção de seu filho, Armando Praça Neto.

Obra

Assim me Contaram. (1ª Edição 1996 e 2ª Edição 2015)
Histórias de Assombração do Aracati. Publicação do autor. (1ª Edição 2006 e 2ª Edição 2016)
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A Maçonaria em Aracati (1920-1949). (2010)
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