Aracati

Monday, 11 January 2016 21:13

O DUELO

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Havia mais de uma semana que o navio da Cia. Pernambucana de Navegação comandada pelo Capitão José Santos, estava no porto do Aracati recebendo carga para seguir viagem com destino ao sul do País. 

Na última semana de permanência aqui antes de zarpar para sua viagem, os familiares do comandante Santos resolveram fazer uma festinha de despedida para ele e sua esposa D. Elvira, aracatiense, cujos familiares eram todos radicados em Aracati, como seu irmão o vereador Antônio Bandeira[1], sua prima D. Mariquinha e sua mãe D. Ritinha, que residia no Fortim. 

  

A festinha promovida por amigos e familiares aconteceu na Rua Grande, chamada na época de Rua Conselheiro Liberato Barroso[2], na casa de D. Mariquinha Pinheiro, prima dileta e amiga do casal, mãe dos irmãos José Pinheiro e Belarmino Pinheiro. 

  

Ao som da orquestra formada por músicos das antigas bandas Euterpe Operária e da Charanga Zaranza, os animados convidados dançaram e se divertiram até quase depois da meia noite. 

  

O DESACATO 

  

Ao se despedir dos amigos, o comandante Santos e sua mulher D. Elvira, tomaram o caminho da casa do vereador Antônio Bandeira, na Rua do Rosário[3], onde estavam hospedados. Caminhando de mãos dadas entraram na Travessa do Encontro, atual João Adolfo Gurgel do Amaral, apreciando o imponente sobrado da família Gurgel onde morara D. Olímpia Gurgel do Amaral. Bem no meio do beco, mal iluminado pela fraca luz que fornecia a Usina Elétrica da Casa Costa Lima, avistaram um homem urinando abertamente, sem nenhum pudor. 

  

Avisado de que ali vinha uma senhora e que tivesse compostura, o homem, que parecia estar embriagado, pouco caso fez do protesto do cidadão que caminhava ao seu encontro. Permaneceu o indivíduo na mesma posição, indiferente, como se nada tivesse ouvido. Indignado com o que considerou uma falta de respeito para com sua esposa, comandante José Santos agrediu, com uma bofetada no rosto, aquele elemento insolente, que com seu gesto cometia também um delito, desacato ao pudor, atingindo e ferindo a moral e os bons costumes da época. 

  

Acontece que aquele sujeito que desacatara o comandante Santos naquela noite na Travessa do Encontro[4], tratava-se de Raimundo Maia, agente da polícia marítima e afamado valentão, a quem todos temiam devido aos inúmeros casos de violência por ele praticados desde que viera para Aracati. 

  

Não se sabe se o comandante Santos conhecia Raimundo Maia. Talvez naquele beco escuro não tenha percebido de quem se tratava. Mas Raimundo Maia, que trabalhava no setor marítimo, mesmo que estivesse embriagado, naturalmente deve ter reconhecido o comandante Santos, até mesmo porque o comandante José Santos era um tipo musculoso, homem muito forte, de mais um metro e noventa, portanto um tipo que não passava despercebido em lugar nenhum, muito menos numa pequena cidade como o Aracati de antanho. 

  

A NOTÍCIA GANHA AS RUAS DE ARACATI 

  

De manhã cedo, o comandante relatou o ocorrido ao seu cunhado Antônio Bandeira, que procurou se inteirar a respeito de quem seria o indivíduo que tentara desacatar Santos. 

  

A demora em conhecer toda a história foi somente o tempo de abrir a porta de sua casa na Rua do Rosário. Pessoas que estiveram cedo no mercado público, contaram ao vereador Antônio Bandeira que viram Raimundo Maia no mercado fazendo ameaças ao comandante Santos e jurando uma vingança. 

  

Antônio Bandeira que conhecia Raimundo Maia e tinha certa relação de amizade com ele, mandou-lhe recado por um portador dizendo que gostaria de conversar para esclarecer o episódio e tentar amenizar a situação. 

  

Como Antônio Bandeira imaginava, pois conhecia bem o personagem, Raimundo Maia não deu resposta nem apareceu para a conversa. Preocupado com a situação que se instalou, Antônio Bandeira avisou ao comandante José Santos que tivesse cuidado, pois o indivíduo com quem ele tivera o entrevero era pessoa violenta e vingativa e que não deixaria que essa ofensa ficasse sem o troco. 

 

Mariquinha muito preocupada e ansiosa chamou Santos a sua casa e relatou os feitos de violência praticados por Raimundo Maia, citou inclusive a quebra total do jornal A Região de Ezequiel Menezes, realizada por ele e seus comparsas ocorrida em 1928 com uma tremenda repercussão em todo Ceará, e acrescentou:

  

 - Santos, esse homem, dizem que atira tão bem de revólver que era costume dele no tempo da queima dos Judas no sábado da aleluia, derrubar os Judas dependurados na forca cortando a corda à bala... 

  

ACERTO DE CONTAS 

  

Uma semana se passara do acontecimento que deixara o comandante Santos e a família bastante preocupados com o que poderia advir desse desentendimento. No último domingo de sua estada em Aracati, ele resolveu ir até o Fortim se despedir de sua sogra, D. Ritinha, que lá morava. 

  

Dia 02 de maio de 1937, domingo, saindo cedinho do porto Monteiro num pequeno bote alugado, Santos e D. Elvira, juntamente com o barqueiro, aproveitando a maré vazante soltaram o pano do bote com destino ao Fortim. 

 

Raimundo Maia, agente da polícia marítima, sabia que aquele domingo era o último dia da estadia do navio comandado pelo capitão José Santos no porto do Aracati. Informado por pessoas traiçoeiras que desejavam ver sangue e assistir a um espetáculo de morte, Raimundo Maia foi avisado de que, naquele domingo, o capitão Santos estaria no Fortim em visita à sogra, já que partiria na segunda-feira, ao raiar da madrugada rumo ao sul do País. 

  

Antes de Santos tocar o porto do Fortim, bem perto do antigo trapiche, Raimundo Maia já se encontrava bebendo numa bodega distante poucos metros da barreira de onde podia se avistar o movimento dos barcos que chegavam e saiam. 

  

Chegando à casa de D. Ritinha, a alegria e a satisfação que traziam pelo prazer do encontro e da visita foram substituídas pelo temor e pelo medo. D. Ritinha, assustada, contou a Santos que Raimundo Maia estava no Fortim, embriagando-se e com certeza sabendo de sua presença, viria tomar satisfação. 

  

O CONFRONTO 

  

Entre 11 e 12 horas do dia, Santos e D. Elvira se despediram dos familiares e desceram uma pequena ribanceira que havia em frente à casa de Zé Bandeira[5] para pegarem o barco e retornarem ao Aracati. Para não chamar muito a atenção, o próprio Santos estava empurrando o bote para dentro d’água, enquanto o barqueiro não chegava, com a finalidade de apressar a saída, quando escutou o grito de D. Elvira, que vinha um pouco atrás: 

  

- Santos!!! 

  

Ao se virar Santos avistou Raimundo Maia que descia o barranco em frente ao porto onde estava o bote com dois revólveres: um em cada mão. 

  

O grito de Santos, mandando a mulher se afastar do local, foi abafado pelo estampido do primeiro tiro que atingiu José Santos, mesmo em cima do peito. Desequilibrado, procurando se esquivar dos disparos, caminhou para perto do bote, perseguido por seu terrível inimigo. Raimundo Maia, já bem próximo ao comandante Santos, questão de poucos metros, na beira do rio, detonou o segundo tiro atingindo de raspão a cabeça de Santos que, no desespero para se proteger, arrancou a cana de leme do bote e segurando-a, tentava sem rumo e em vão, defender-se das balas dos revólveres de Raimundo Maia. Cambaleando, esvaindo-se em sangue, o comandante Santos, vendo a morte chegar, frente a frente com Raimundo Maia, desesperadamente, numa derradeira manifestação de sobrevivência, ergue a cana de leme que tinha nas mãos, como única arma que detinha para se defender, desfecha uma pancada certeira e mortal de cima para baixo, acertando a cabeça, e abrindo o crânio, do seu agressor que, mesmo nos estertores finais ainda desfechou o último tiro, arrancando um dedo da mão do comandante José Santos. 

  

Os corpos dos dois homens tombaram lado a lado na margem do rio Jaguaribe. Raimundo Maia já defunto tinha a cabeça esfacelada de onde se esvaía o sangue, manchando de vermelho as águas do Jaguaribe. Santos, agonizando em estado de choque, tinha parte do corpo banhada pelas águas do rio. 

  

O comandante foi trazido de barco para o Aracati diretamente para casa de D. Mariquinha Pinheiro, onde ficou entre a vida e a morte durante três dias, em total e profundo estado de coma. 

  

Recuperado dos graves ferimentos, voltou o comandante Santos às suas atividades de condutor de navios da Cia. Pernambucana de Navegação vindo sempre ao Aracati de férias, e em outras ocasiões quando a rota de navegação dos navios que comandava tinha a cidade como destino. 


[1] Antônio Gondim Bandeira, vereador em várias Legislatura, chefe político do PSD. 

[2] Atualmente Av. Cel. Alexanzito 

[3] Atualmente Rua Cel. Pompeu Costa Lima 

[4] Atualmente Travessa João Adolfo Gurgel do Amaral. 

[5] Antigo Comerciante do Fortim 

 

Lido 318 vezes Última modificação em Sunday, 06 November 2022 14:41
Antero Pereira Filho

ANTERO PEREIRA FILHO, nasceu em Aracati-CE em 30 de novembro de 1946. Terceiro filho do casal Antero Pereira da Silva e Maria Bezerra da Silva, Antero cresceu na Terra dos Bons Ventos, onde foi alfabetizado pela professora Dona Preta, uma querida amiga da família. Estudou no Grupo Escolar Barão de Aracati até 1957 e, a partir de 1958, no Colégio Marista de Aracati, onde concluiu o Curso Ginasial.
Em 1974, Antero casou-se com Maria do Carmo Praça Pereira e juntos tiveram três filhos: Janaina Praça Pereira, Armando Pinto Praça Neto e Juliana Praça Pereira. Graduou-se em Ciências Econômicas pela URRN-RN em 1976 e desde então tem se destacado em sua carreira profissional.
Antero atuou como presidente do Instituto do Museu Jaguaribano em duas gestões (1976-1979/1982-1985) e foi secretário na gestão do prefeito Abelardo Gurgel Costa Lima Filho (1992-1996), responsável pela Secretaria de Indústria, Comércio, Turismo e Cultura.
Além de sua carreira profissional, Antero é conhecido por seus estudos sobre a história e a memória da cidade e do povo aracatiense, amplamente divulgados em crônicas e artigos publicados na imprensa local desde 1975. Em 2005, sua crônica "O Amor do Palhaço" foi adaptada para o cinema em um curta-metragem (15") com direção de seu filho, Armando Praça Neto.

Obra

Assim me Contaram. (1ª Edição 1996 e 2ª Edição 2015)
Histórias de Assombração do Aracati. Publicação do autor. (1ª Edição 2006 e 2ª Edição 2016)
Ponte Presidente Juscelino Kubitschek. (2009)
A Maçonaria em Aracati (1920-1949). (2010)
Aracati era assim... (2024)
Fatos e Acontecimentos Marcantes da História do Aracati. (Inédito)
Notícias do Povo Aracatiense (Inédito)

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