Aracati

Sunday, 15 May 2016 07:19

A TRAGÉDIA DA FAMÍLIA LEITE BARBOSA

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"Em dias de fevereiro/ Grande desastre se deu/ Na lancha Vencedora/ Treze pessoas morreram/ Ainda escaparam doze/ Por um milagre de Deus" [...] Era essa modinha que cantavam pelas ruas depois do acontecido. Ficou muito popular, tinha outros versos, mas não me lembro mais. 

Você não conhece essa história?!! Não acredito! A história do desastre da lancha Vencedora, a maior tragédia que já aconteceu no Aracati? A tragédia da família Leite Barbosa? Pois então quem vai lhe contar sou eu Adrião Zaranza, um dos doze sobreviventes daquele passeio fatídico, ocorrido no dia 27 de fevereiro de 1917, um dia de terça-feira.

  

O EMBARQUE 

 

Seria por volta de cinco horas da tarde quando cheguei na Tamarineira, onde era o porto, estava lá o Raimundo Craveiro maquinista da fábrica de tecidos ajeitando a lancha do Dr. José Leite. Do Dr. José Leite você ouviu falar, não? Pois bem, Dr. José Leite Barbosa era médico e sócio-gerente da Fábrica de Tecidos Santa Tereza, um homem simpático e muito agradável, gostava de passear no seu automóvel pelas ruas do Aracati. Essa lancha, da qual ele muito gostava, foi comprada em Fortaleza, era a pano e a motor. 

  

Estava eu, conversando com Raimundo Craveiro e com Pedro chofer, que era seu auxiliar, quando avistei Dr. Leite, era assim que ele era chamado, chegando com toda família para um passeio pelo rio Jaguaribe que estava muito cheio. 

  

A comitiva era grande, esse povo vinha todo bem-vestido. Os homens de paletó e as mulheres de vestidos compridos, rendados muito bonitos. Além de sua família, Dr. Leite vinha acompanhado de vários amigos que ele convidara para esse passeio no rio Jaguaribe, que estava como se diz, de barreira a barreira fazendo um panorama muito bonito. 

  

Raimundo Craveiro me convidou para embarcar, fiquei meio sem jeito, você sabe, pobre no meio de gente rica e importante, fica assim meio esquisito. Mas como Raimundo me convidou aceitei o convite para o passeio. Eram na minha lembrança 24 pessoas a bordo; mas depois um jornal que tinha aqui chamado O Progresso[1], afirmou que eram 25 pessoas que estavam na lancha Vencedora, que Manuel Chapeleta ia também, mas na minha lembrança não tenho recordação. Pra mim eram 24 as pessoas que estavam naquele passeio na lancha Vencedora. 

  

Quando todos embarcaram, uns ficaram no convés e outros na tolda que a lancha tinha, Raimundo Craveiro deu partida no motor, deixando no leme Raimundo Boi, que sempre costumava guiar a lancha nos passeios que o Dr. Leite realizava costumeiramente. 

  

A CORRENTEZA 

  

Devido à forte correnteza, desde o princípio da viagem, fiquei com medo, pedi inclusive para descer. Mas como o rumo que a lancha tomou era pelo canal, do chamado rio Pequeno, que era uma espécie de braço do rio que corria ao lado da cidade, ia da Infunca[2] até o São José[3], do lado de cá de quem vai subindo o rio, fiquei mais aliviado e pude apreciar a beleza extraordinária da enchente, do volume d’água toldada, carregando o balseiro que descia para o mar. 

  

Segundo eu soube, lá naquela ocasião, que a intenção do Dr. Leite era que o passeio fosse curto, pois a noite já se aproximava. O roteiro então era que se fosse até a Ilha das Pedras, que ficava defronte ao Medeiro, lugarejo que ficava na margem oposta do rio, do outro lado como se diz, e logo retornassem. 

  

Ao alcançar a Ilha das Pedras, foi avistado os fios do telégrafo que atravessava o rio dum lado pro outro. O mestre da lancha achou que não dava para a lancha passar por debaixo dos fios devido à subida das águas por causa da enchente. Achava ele que o mastro da lancha poderia bater nos fios e causasse um acidente. 

  

Discutiram por ali, conversaram entre eles e decidiram então prosseguir a viagem. Você sabe, empregado é empregado. Quando foi se aproximando dos fios do telégrafo a velocidade da lancha foi diminuída. Nessa ocasião um filho do Zé Colibri, não me lembro qual deles, subiu no mastro da lancha, mostrando com o braço estirado pra cima que dava para a lancha passar sem bater nos fios do telégrafo. 

  

A viagem então continuou até depois da Ilha das Pedras. 

  

O PRINCÍPIO DO SINISTRO 

  

Agora, meu amigo, é que começa a verdadeira história: Raimundo Boi que ia no leme, queria voltar pelo mesmo seguimento que viera, mas Dr. Leite queria voltar pelo rio grande. Ainda me lembro do Dr. Carlos Cordeiro, fiscal da Mesa de Rendas do Estado aqui no Aracati, agoniado querendo voltar. O motivo que alegavam de retornar pelo meio do rio, era que a viagem seria mais rápida devido à forte correnteza e o regresso breve porque já começava a escurecer. 

  

Acontece que, no meio do Rio grande, os fios do telégrafo que cruzavam o rio, faziam um seio muito grande devido ao peso e o enorme espaço que havia entre os postes que sustentavam esses fios; ficando em época de enchente muito baixo em relação às águas do rio. Por isso os barqueiros acostumados a essa situação só navegavam subindo ou descendo o rio o mais perto possível das margens. 

  

Depois do acontecido, uma reportagem de um jornal da época escreveu relatando que Raimundo Boi quisera proceder assim, mas teve de obedecer àqueles que insistiam para que marchasse pelo meio do rio. Eu vou buscar o jornal que tenho aqui guardado para você mesmo ler como foi que esse jornal descreveu o desastre. Leia para ver se confirma mesmo a verdade: 

  

“Feita a volta do extremo da ilha no seio da correnteza caudalosa do rio sôfrego e veloz, a lancha Vencedora acionada, resfolegando, estremecendo toda descia em desabrida carreira, rio abaixo... 

  

Aqueles que desejaram que o retorno fosse mais rápido, agora assistiam a lancha Vencedora desenvolver grande velocidade no canal central do rio Jaguaribe, onde a correnteza era mais poderosa, sem pressentir o perigo que os aguardava... 

  

Alguns dos passeantes, entre os quais o Dr. José Leite, permaneciam na tolda da lancha apreciando o belo espetáculo do entardecer... 

  

Ao lusco-fusco da tarde, repentinamente, sem que ninguém notasse, alguém que da tolda pressentira, avisou que o mastro da lancha ia tocar na linha telegráfica... 

  

Súbito, medonho perigo a todos envolve: O mastro da lancha batera sobre a linha telegráfica, num ponto em que o rio era muito alto e a linha formava um grande seio, parando a embarcação subitamente. O maquinista corre ao motor e dá contramarcha; mas o mastro emaranhado nos fios telegráficos com a força da máquina e da correnteza, fazem a lancha adornar, começando logo a receber água... 

  

O mastro da lancha prendendo-se as linhas telegráficas levou-as adiante com o impulso da velocidade. Um dos fios partiu-se; os demais resistiram, retesando-se fortes. 

  

A resistência fora maior que a força... 

  

Partiu-se um dos postes de ferro que os segurava... 

  

Nesse momento a lancha desgovernada, recebia em cheio, sobre o mastro, todo o peso das linhas do telégrafo que baquearam na água... 

  

A correnteza arrastando-a para baixo e o peso dos fios presos ao mastro inclinando-a para cima, fizeram-na adornar, encher-se d’água e submergir-se rapidamente". 

  

Foi assim mesmo, quando a lancha vinha pelo rio grande, bateu com o mastro nos fios do correio quebrando inclusive os postes. Aquela cena nunca me saiu da lembrança. Dr. Leite ainda disse: “Raimundo a lancha bateu nos fios”. Quem estava no costado caiu n’água nadando em procura da Ilha. 

  

 Mas continue lendo a narração do jornal para a gente ver o resultado final. 

  

“A vela do motor explodira e as águas invadiram rapidamente a pequena embarcação, tragando-a com todos que estavam no seu bojo, sem lhes dar tempo de, ao menos, uma tentativa executarem para se salvar. Gritos lancinantes, brados de misericórdia ao Deus dos aflitos foram ouvidos nas margens; um pandemônio horrível, uma confusão inenarrável, uma ânsia inexprimível é o que se pode dizer do que fora aquele quadro sinistro em que, afogando-se, debatendo-se torturados pela mesma amargura, Treze Pessoas desapareceram na voragem profunda das águas.” 

  

CLAMOR NAS ÁGUAS DO JAGUARIBE 

  

Você sabe, rapaz, que tem coisa que não sai da cabeça da gente nem que viva cem anos, e eu já tou perto de chegar a essa idade, mas não esqueço. Digo isso porque ainda me lembro do Dr. Leite no auge da agonia dizendo: Meu Deus, meu Deus, misericórdia. Zé Adrião – meu tio – que estava também na lancha, lembra que Dr. Leite agarrado, a lancha dizia: “Zé Adrião não me deixe morrer... Não me deixe morrer”. 

  

Porém diante da situação de aperreio e agonia não havia mais nada a fazer.  Foi então que caí na água e me peguei com o Senhor do Bonfim, nadando contra correnteza; parecia que era um motor que ia me empurrando... 

  

Pois sim, treze pessoas morreram naquele triste acidente, e não morreu mais gente porque quando ouviram os gritos que vinham do meio do rio, uns barqueiros que estavam na margem do rio perto do local do naufrágio, pegaram uma bateirinha e foram em socorro. Os nomes deles saíram no jornal. Veja aí: ...Francisco Fidelis, Joaquim, Raimundo e João Silvestre. 

  

Salvaram oito pessoas que estavam ainda em cima d’água tentando se salvar. 

  

Então como eu ia lhe contando, me peguei com o Senhor do Bonfim, fiz uma promessa pra ele, caso me salvasse todos os anos eu acompanharia a procissão do Senhor do Bonfim descalço, com os pés no chão por toda a procissão. 

  

João Adrião – que também estava no passeio - chegou numa croa já escuro, ouvindo meu barulho gritou: 

- Aí vem morrendo uma pessoa!! 

Eu conheci a voz dele e respondi: 

- João me acuda que tou morrendo. Eu já vinha exausto sem forças, foi então que fui salvo por João Adrião. 

Já era escuro não se ouvia mais nada. João se virou então pra mim e perguntou: 

- Cadê Zé Adrião? 

-Eu não sei, só o vi na lancha. 

- Começamos então a gritar: 

- Zé Adrião... Zé Adrião. Zé Adrião... 

- Foi aí que ele respondeu: 

-Tou aqui... Tou aqui... Tou aqui... 

- Me parece que somente nós três fomos os únicos que se salvaram nadando... Os outros que também se salvaram, foram salvos pela bateirinha. 

  

O CLAMOR DOS AFLITOS NAS RUAS DO ARACATI 

  

Viemos então pela Cacimba do Povo[4], passamos em frente ao Cinema Popular[5], que era ali em frente ao Bonfim[6], onde já havia muita gente. A notícia tinha se espalhado por toda cidade. Seu Alexanzito[7] estava lá, ele era o prefeito e também genro do Dr. Leite. Nós paramos um pouco por lá e ouvimos uma conversa de que iam chamar Henrique Coe[8] para pegar uma lancha e correr o rio procurando socorrer alguém que ainda estivesse vivo... Ninguém ainda sabia quem tinha morrido, nem quem tinha escapado, estava tudo no maior desespero sem saber nem o que fazer diante daquela tragédia. 

  

Foi uma noite de horror, em frente à casa do Dr. Leite, aquele sobrado quase em frente à avenida, que hoje é de Raimundo Joventino. A multidão não arredava o pé esperando notícias. Isso foi à noite toda. O povo não acreditava no que tinha acontecido. 

  

Eu soube depois, que na mesma noite do acontecido, a lancha Vencedora foi encontrada no meio do rio sendo levada pela correnteza. Atracaram ela a outras embarcações e no dia seguinte a trouxeram. A lancha ficou emborcada, quando o rio vazou o povo revoltado queria tocar fogo na lancha, porém o Miguel Leite, sobrinho do Dr. Leite e também sócio da Fábrica Santa Tereza não permitiu. Disse que precisava da lancha. Ele tinha toda razão, pois na cheia de 1924 essa mesma lancha – Vencedora – recuperada, muito serviu durante a enchente. 

  

No outro dia de manhã, passava os corpos pelo rio, não houve acompanhamento. Era só chegando na Tamarineira – porto – e levando para o cemitério.  Da família do Dr. Leite morreu, além de sua pessoa, sua esposa e quatro filhos, sendo um menino e três meninas, e um sobrinho. O primeiro corpo que apareceu foi da menina Edméia filha do Dr. Leite, encontrado boiando fora da barra, na crista das ondas vestida de branco. O último, Dr. Leite, a ser encontrado, apareceu depois de dois dias... 

  

Fonte: Entrevista cedida pelo Sr. Adrião Zaranza à Antero Pereira Filho na década de 1990.


[1] Jornal O Progresso fundado em Aracati, em Setembro de 1916 

[2] Atualmente Bairro de Fátima. 

[3] Localidade ao sul da cidade. 

[4] Bairro ao sul da cidade. 

[5] Atualmente residência do Sr. Fabio Silva na Av. Cel. Alexanzito nº 

[6] Igreja do Bonfim. 

[7] Alexandre Matos Costa Lima, comerciante, chefe político, prefeito por vários mandatos. 

[8] Mecânico, dono da maior oficina do Aracati na época. 

Lido 1297 vezes Última modificação em Sunday, 06 November 2022 22:42
Antero Pereira Filho

ANTERO PEREIRA FILHO, nasceu em Aracati-CE em 30 de novembro de 1946. Terceiro filho do casal Antero Pereira da Silva e Maria Bezerra da Silva, Antero cresceu na Terra dos Bons Ventos, onde foi alfabetizado pela professora Dona Preta, uma querida amiga da família. Estudou no Grupo Escolar Barão de Aracati até 1957 e, a partir de 1958, no Colégio Marista de Aracati, onde concluiu o Curso Ginasial.
Em 1974, Antero casou-se com Maria do Carmo Praça Pereira e juntos tiveram três filhos: Janaina Praça Pereira, Armando Pinto Praça Neto e Juliana Praça Pereira. Graduou-se em Ciências Econômicas pela URRN-RN em 1976 e desde então tem se destacado em sua carreira profissional.
Antero atuou como presidente do Instituto do Museu Jaguaribano em duas gestões (1976-1979/1982-1985) e foi secretário na gestão do prefeito Abelardo Gurgel Costa Lima Filho (1992-1996), responsável pela Secretaria de Indústria, Comércio, Turismo e Cultura.
Além de sua carreira profissional, Antero é conhecido por seus estudos sobre a história e a memória da cidade e do povo aracatiense, amplamente divulgados em crônicas e artigos publicados na imprensa local desde 1975. Em 2005, sua crônica "O Amor do Palhaço" foi adaptada para o cinema em um curta-metragem (15") com direção de seu filho, Armando Praça Neto.

Obra

Assim me Contaram. (1ª Edição 1996 e 2ª Edição 2015)
Histórias de Assombração do Aracati. Publicação do autor. (1ª Edição 2006 e 2ª Edição 2016)
Ponte Presidente Juscelino Kubitschek. (2009)
A Maçonaria em Aracati (1920-1949). (2010)
Aracati era assim... (2024)
Fatos e Acontecimentos Marcantes da História do Aracati. (Inédito)
Notícias do Povo Aracatiense (Inédito)

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