MEMÓRIAS: CHEIAS DE ARACATI
[...] tenho lembranças mais vivas, da cheia que ocorreu no referido ano de 1924, em que o Jaguaribe invadiu a cidade de Aracati, desalojando todos os seus habitantes, que, no Carnaval passado, haviam cantado a marchinha que dizia:
"Vamos pro mato morar laiá
Vão marchando que eu já vou"...
ficando grande parte da população abrigada debaixo dos cajueiros e oiticicas, por absoluta falta de terem aonde ir, durante quase um mês.
Lembro-me que estávamos dormindo na casa da nossa tia Teté, que era vizinha da nossa (rua do Comércio 210) [...], e quando acordei de manhã, vi os penicos boiando, como verdadeiros barquinhos de papel, que a estes se assemelhavam até pela cor branca da louça de que eram feitos.
Levantei-me assustado e coloquei os pés dentro d'água, pois o rio Jaguaribe havia invadido a nossa maior privacidade e o que nos valeu, é que dormíamos na rede, que sendo alta, não foi atingida pela inundação.
Aí, então, começou o lufa-lufa de apanhar tudo o que fosse possível salvar da enchente, para colocar no barco que meu avô Quincas havia providenciado, para nos levar à nossa fazenda, que fica na margem esquerda do rio e que na sua parte mais alta, não é atingida pelas inundações periódicas.
Em 1917, havia ocorrido outra cheia de igual porte, quando várias pessoas da família Figueiredo morreram afogadas, quando passeavam de barco no perigoso rio, quando cheio demais, e o mastro da embarcação tocou no fio telegráfico, fazendo a barca virar e os que não sabiam nadar, foram arrastados pela correnteza, no lugar denominado Tomé.
Na cheia de 1924, muitas famílias eram embarcadas pelas varandas dos sobrados, tão alta estava a água dentro da cidade e todos tinham que correr o mais depressa possível, para salvar a própria vida, antes que começassem os desmoronamentos e os consequentes redemoinhos por eles causados, com risco de vida para os que estavam próximos.
O difícil, além de sair da cidade inundada, era transpor a correnteza violenta, causada por um rio de 500 metros de largura habitualmente, transformado numa largura de mais de 2.000 metros.
Para evitar esta grande correnteza, era preciso sair com o barco pela parte mais oeste da cidade, no lugar denominado Cruz das Almas, onde havia o campo de futebol, para cruzar o rio na direção do Tomé ou Barreira Vermelha, onde hoje fica a ponte Juscelino Kubistchek, com 500 metros de largura, para que o barco, empurrado pela grande corrente, aportasse no Porto de José Alves, onde fica a sede da fazenda do meu avô, hoje nossa e dos nossos primos, Maria, Lucimar e Armando, filhos da tia Teté e dos meus irmãos José e Helena, que lá moram até hoje.
Pra isso, estávamos entregues à perícia do timoneiro, que ficava encarregado do leme e da força dos remadores, que em número de oito, quatro de cada lado do barco, mantinham a sua proa apontada para o Tomé, no sentido de não sermos arrastados para a Barreira Preta, lugar onde a correnteza era mais acentuada, dada a grande curva que o rio faz nesse local, onde poderíamos até soçobrar.
Nossas tias avós, irmãs do meu avô Quincas, chamadas carinhosamente, Mimim, Mina, Mindoca, Cá e Flor, apelidos de Hermínia, Guilhermina, Felismina, Ricardina e Florinda, iam juntamente com minha mãe, tia Teté e Leonor, ajoelhadas no barco rezando, para que a travessia se fizesse a são e salvo, pois além dos adultos, eram 8 crianças, 4 meninos e 4 meninas, além dos empregados e do meu avô.
Felizmente, conseguimos atravessar o rio e aportamos no lugar denominado Alto da Cheia, onde iríamos passar uma alegre temporada de férias, tato em que se converteu a cheia para as crianças, pois, para os adultos era um grande transtorno, mas, para as crianças era motivo de aventura e de uma temporada fora da rotina, pois até o horário rígido de dormir, que era às 19 horas, foi relaxado para as 20, apenas com a falta da tia Belinha Souto, amiga da minha mãe, que ia todos os dias nos contar história na cidade, mas que com a cheia, teve que ir para o seu sitio Cajueiro, onde havia também um Alto para as cheias periódicas, que afligem a centenária cidade de Aracati.
VELHA PAINEIRA
I
Não recordemos a vida que passou
Suspirando pela antiga mocidade,
Mas olhemos a árvore que ficou
De pé assistindo a tempestade,
II
Dando abrigo seguro ao viandante
Que não pode seguir na caminhada,
Protegendo-o da noite inquietante
E já de pé quando surge a alvorada
III
Não exaltemos somente a mocidade
Que possui a pureza do orvalho,
E do bambu a flexibilidade.
Mas não tem a resistência do carvalho,
IV
Como só acontece com as procelárias,
Que prenunciam sempre a tempestade,
Miremo-nos nas árvores centenárias
Que jamais se abateram com a idade
V
É bem melhor aquele que resiste
Ao furacão e à força da enxurrada,
E em toda sua vida só persiste
Na direção da meta desejada
VI
Quanto mais velha a secular paineira
Mais se admira a sua grandeza,
Mais se destaca sua fronde altaneira
E o seu potencial de fortaleza
VII
Assim também a nossa vida é como a planta
Que de pequeno arbusto inicial,
Em árvore formosa se levanta,
Com galhardia vence o temporal
VIII
Sobrepuja a fúria da tormenta,
Mantendo sempre a sua grande fé,
Mostrando a todos a fibra que a sustenta
E quase sempre vai morrer de pé.
(Antônio da Rocha Guimarães in "50 Anos de Poesia",p. 63) Rio, 31-7-90)
PARA DRUMMOND DE ANDRADE
I
Poeta Drummond de Andrade
Tu foste o vate maior
Que habitaste esta cidade
Fazendo o verso melhor
II
Com a mesma simplicidade
Com que viveu nos deixou,
Largando na orfandade
A cidade que amou
III
Deixando a sua Itabira
Ainda na mocidade
Construiu com sua lira
Um verso de qualidade
IV
Seus poemas correm o mundo
Nos livros que publicou,
Seu sentimento é profundo
É o poeta do amor
V
Viveu com muito critério
Sem nada querer da vida
E nos lega o refrigério
Do exemplo na partida
VI
A sua morte provém
De perder filha querida
Seu coração não contém
Mais alento para a vida
VII
Quero que você poeta
Mande outro em seu lugar,
Pois a vida que se enceta
Sem versos pode parar.
(Antônio da Rocha Guimarães in 50 Anos de Poesia, p. 55) Rio, 18-8-87
TEUS OLHOS
Teus olhos têm um brilho singular
Encantaram-me tanto ao contemplá-los
Que vacilei com estrelas compará-los
Ou com safiras sempre a cintilar
Olhos azuis que tem a cor do mar
Com lindos cílios de ouro a circundá-los
Ninguém fitá-los pode sem pasmar
E como o rio manso e cristalino
Que vai serenamente deslizando
Sob a suavidade do luar
Desejo ter idêntico destino
Que minha vida vá se iluminando
Debaixo de tão cândido olhar.
(Antônio da Rocha Guimarães in 50 Anos de Poesia, p. 21) Fortaleza, 12-5-43
TUA BELEZA
É tão grande a tua formosura,
É tão angelical o teu semblante,
Que se desfaz em mim toda a amargura
Ao contemplar teu rosto cativante.
Quem me dera poder ser teu amante
Para gozar de teu rosto a candura,
Simulacro real ou semelhante
Ao de deusa mudada em criatura.
Se me amas de todo o coração
Quisera eu também ter a certeza,
Anjo de paz, estátua do perdão,
E eu te afiançava com presteza,
Que das virgens que habitam o meu torrão,
És tu somente o símbolo da beleza.
(Antônio da Rocha Guimarães in 50 Anos de Poesia, p. 11)